Pronúncia padronizada do nome do estado na TV é um desserviço cultural
Escrito por Sérgio Rodrigues
As agressões a imigrantes venezuelanos ocorridas em Roraima nos últimos dias sopraram a brasa de uma
controvérsia linguística: qual é a pronúncia correta do nome do estado? A vogal
"a" que está em seu miolo é aberta ou fechada?
Não
vamos correr o risco de que os adeptos de "Roráima" e os defensores
de "Rorâima" terminem por se enfrentar nas ruas. Como é frequente,
falar aqui em "pronúncia correta" não faz sentido.
As
duas formas são legítimas (já houve uma terceira, "Roraíma", há muito
caída em desuso), cada uma hegemônica numa região. Os próprios roraimenses,
entre outros brasileiros, adotam "Roráima". Ninguém sonharia em lhes
tirar esse direito.
No
entanto, nascido em Minas Gerais e morador do Rio de Janeiro há décadas, eu
—como muita gente— vou de "Rorâima". Um direito também incontestável.
A
mesma variação se aplica a "Jaime". Em Portugal, a vogal
da sílaba tônica desse nome é aberta, mas grande parte dos brasileiros tende a
nasalizar ditongos seguidos de "m" ou "n" —o traço que leva
à troca da pronúncia "ruím", clássica, pela popular "rúim".
"Rorâima"
é o "certo", então? Afirmar isso seria tão autoritário quanto
defender que, por ser a pronúncia local, "Roráima" deveria ser
adotada de norte a sul do país. A prosódia única nessas questões faz tanto
sentido quanto a disputa infantil do sotaque "certo".
Já
vi roraimenses invocando uma mítica "pronúncia original", ligada à
raiz indígena da palavra, para defender tal exclusividade. Outro equívoco:
etimologia é uma coisa, prosódia é outra.
Nesse
sentido, a padronização da pronúncia "Roráima" como a única aceitável
na boca de repórteres de TV presta um desserviço cultural, por sugerir que a
terraplenagem das ricas variações regionais do português brasileiro seja um
progresso. É o oposto.
"Todos
os esforços em favor da simplicidade despojada são bem-vindos num país como o
nosso, onde ainda se cultiva uma escrita ornamental, feita mais para iludir do
que expor e esclarecer. Não se trata apenas da prolixidade afetada própria do
Judiciário ou da verborragia evasiva no ambiente parlamentar.
Bulas,
manuais de uso, documentos oficiais, instruções ao consumidor etc. são
redigidos de maneira nebulosa, eufemística, quando não abstrusa, no hábito
deliberado de evitar compromissos e eludir responsabilidades. Comunidades
inteiras (urbanistas, pedagogos e psicólogos, por exemplo) tendem a escrever
num dialeto infestado de ideias vagas e substantivos abstratos que traduzem
pouco sentido objetivo."
Os
parágrafos acima foram escritos por Otavio Frias Filho no
artigo "Mártires do estilo",
publicado em sua coluna na Ilustríssima no
último dia do ano passado. Sem ter conhecido o diretor de Redação da Folha, que morreu na madrugada desta
terça-feira (21), aos 61 anos, junto essas linhas de sua autoria às
homenagens que lhe têm sido feitas por amigos e colegas.
Trata-se de uma cruzada que ele
empreendeu na prática ao longo de sua vida profissional, texto após texto, e
que naquele artigo demonstrou conhecer também de forma teórica.
Se quisermos superar os entraves
ao desenvolvimento brasileiro, seremos obrigados a trocar em algum momento
nosso apego doentio à linguagem enrolada e turva pela valorização social da
expressão clara de ideias claras.
Escrever melhor, ler melhor,
pensar melhor. Também nesse campo de batalha a falta de Otavio Frias Filho será
sentida.
[Fonte: www.folha.com.br]
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