domingo, 24 de setembro de 2017

Os brasileiros ricos que procuram Portugal para viver

A paisagem, as praias e o clima lembram-lhes a dolce vita do Rio de Janeiro. Cascais é o seu epicentro: uns recomeçam na Quinta da Marinha, outros no Estoril, ou no bairro do Rosário. Porto e Algarve também são opções
Família Matta
Escrito por Raquel Lito




Até à cancela do condomínio faz-se um caminho por estradas privadas com moradias de luxo e um campo de golfe ao fundo. Sem recorrer ao GPS é um quebra-cabeças encontrar um dos refúgios das novas elites de Cascais. Está inserido na Quinta da Marinha, em coabitação pacífica com os ilustres de sempre (Pinto Balsemão, Freitas do Amaral, Álvaro Barreto ou o clã Champalimaud), mas poucos sabem como lá chegar. Nem os vizinhos da velha guarda, da mesma condição e que praticam jogging a meio de uma tarde de segunda-feira, conseguem dar indicações exactas. Porque o secretismo varia na razão directa do preço da renda: 5.000 euros por mês. 

A cancela automática sobe. Só há nove vivendas rústicas, ajardinadas, com telhados ao nível das copas dos pinheiros mansos. Entre os moradores turcos, russos, portugueses e belgas há uns imigrantes recém-chegados do Brasil (sem incluir a cantora Fafá de Belém, que costuma passar férias no condomínio). São os cariocas Leandro e Fernanda Matta. Recebem a SÁBADO com uma mesa posta na sala. Vão petiscando bolinhos secos, tostas, queijo e vinho tinto enquanto os filhos – João, de 16 anos, e Vinicius, de 7 – brincam à volta da piscina. Nunca viveram num apartamento, nem tencionam abrir uma excepção. 

As comparações com o clima e a paisagem do Rio de Janeiro são referidas várias vezes, a começar pelo filho mais velho. João esperava ver um Portugal "muito mais parado", mas encontrou animação, natureza e ondas para praticar surf. "Foi surpreendente. A adaptação está a ser muito boa." Em Niterói, a 17 quilómetros do Rio de Janeiro, os pais do adolescente ficavam em sobressalto sempre que ele saía à noite. Fernanda diz que não sabiam "se chegava vivo a casa". O miúdo sempre passou incólume à violência nas ruas, mas a mãe sofria de insónias nessas ocasiões. Foi um factor decisivo para se mudarem para a "Riviera portuguesa" (o rótulo de Cascais divulgado na Internet). "Oiço muita gente dizer: ‘Ai, estou indo para Miami’", diz a imigrante de 41 anos, formada em Direito e casada com Leandro há 19. Na verdade, nunca exerceu advocacia, decidiu dar prioridade à família. O marido, economista, de 46 anos, acrescenta: "Os nossos amigos vão para Flórida ou Portugal. Diria que Cascais é o sonho de consumo. Quero segurança para mim e para a minha família." 


Município em parceria com a Casa do Brasil 

O município está atento ao boom de brasileiros em idade activa, "de elevada qualificação, mestres, licenciados e altos quadros no país de origem", segundo revela à SÁBADO fonte da Câmara de Cascais. À boleia da onda, e para se aproximar desta comunidade – cada vez mais numerosa no concelho –, a Câmara criou uma parceria com a Casa do Brasil em setembro de 2016. Por sua vez, a associação prepara o documentário Ser Imigrante em Cascais, que estará concluído no último trimestre de 2017, e abrirá um ponto de atendimento na zona. 

O facto de Cascais estar no radar brasileiro deve-se, em parte, ao investimento das imobiliárias de topo na zona, como a Porta da Frente Christie’s. Há anos que a agência trabalha neste mercado, com 14 eventos de promoção de Portugal e de Cascais realizados em diversas cidades do Brasil desde 2013. "Começámos em plena crise. Na altura, os brasileiros só queriam saber de Miami e Paris. Mas não desistimos. Esse esforço compensou nos anos seguintes, porque conseguimos criar um fluxo de compradores que nos permitiram vender mais de 70 imóveis em 2015 e 2016, muitos deles em Cascais", explica à SÁBADO o director-geral da imobiliária, Rafael Ascenso. Mais: em 95% das vendas que intermediaram nos últimos três anos a clientes brasileiros, "estes pagaram com capitais próprios, sem recurso a financiamento". 

Os novos betos de Cascais têm perfil e sotaque idênticos. São brasileiros entre os 45 e os 50 anos, que procuram diversificar os seus investimentos "num mercado sólido, que oferece um preço por metro quadrado muito inferior a outras cidades europeias", diz o especialista. Para residência permanente, optam por casas com jardim e piscina ou amplos apartamentos em condomínios fechados. A Quinta da Marinha, a Quinta Patiño e as zonas nobres do Estoril lideram as preferências. Mas também procuram o centro histórico de Cascais, Birre, Marginal e zonas adjacentes com vista de mar. "Temos vendido imóveis que vão dos 400 mil euros aos 5 milhões. Em arrendamentos já atingimos valores acima dos 10 mil euros por mês", destaca o responsável. 

Os vistos gold para imigrantes desta nacionalidade são mais um indicador que reforça a tendência. Figuras discretas que parecem saídas dos núcleos ricos das telenovelas da Globo – muitas delas escudam-se no anonimato e pedem sigilo às imobiliárias –, aterram com mais frequência em Portugal nos últimos meses. Desde 2016 foram atribuídas 298 autorizações de residência para actividade de investimento (vulgo vistos gold) a cidadãos brasileiros, segundo os dados mais recentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) fornecidos à SÁBADO. Destes vistos, 142 foram concedidos em 2016 e os restantes (156) até 30 de abril passado. Março foi o mês que registou o pico de pedidos (66). 

Sair de uma zona paradisíaca ao lado do Rio de Janeiro, como Niterói, para viver em Cascais foi o melhor que aconteceu a Leandro Matta nesta fase da vida. É ele que o diz. O economista, que na sua própria descrição foi workaholic até ao início do ano, vê agora a oportunidade de gozar umas férias prolongadas a minutos do Guincho. É o seu gap year tardio. 

Para ter uma qualidade de vida equiparável à brasileira – que decidiu deixar para trás por causa da crescente onda de insegurança e assaltos à mão armada a qualquer hora do dia –, Leandro adquiriu o visto de residente com recursos próprios. Os seus rendimentos vêm do património imobiliário acumulado no Brasil, são reencaminhados para Portugal e têm benefícios fiscais nos primeiros 10 anos. O economista encara a medida como uma forma de captar investidores e promete dar o seu contributo por via indirecta no consumo: ao pagar o ensino privado dos filhos, o seguro de saúde, a compra do carro, etc. Mas tenciona voltar ao activo porque o mercado nacional parece-lhe promissor. "Quero representar uma marca desportiva na Europa e começar por Portugal." 

O Brasil pertence ao passado. Leandro não perspectiva futuro para o seu país, está descrente dos políticos – em particular do ex-presidente Lula da Silva, que "representa o populismo" – e dos eleitores. Nos últimos cinco anos projectou a saída em família pelo método tentativa-erro. Podiam viver em qualquer parte do mundo, sem restrições. Primeiro, experimentaram Melbourne por uns meses. Mas descartaram a cidade australiana, porque ficava distante e sentiam-se isolados. Tentaram algumas semanas na Califórnia, mas o estilo do sonho americano não era para eles. Cascais foi a terceira opção, e a definitiva pela segurança, custo de vida mais barato em relação aos anteriores destinos e afinidades culturais com o seu país. 

Planearam ao detalhe a mudança para Cascais, desde dezembro de 2014, pesquisando cerca de 40 casas com a ajuda de uma agente imobiliária local. Nenhuma lhes agradava, até descobrirem um paraíso escondido na Quinta da Marinha. Fizeram as malas no início de janeiro deste ano e marcaram a festa de despedida para o fim de semana de 7 e 8, com um almoço de feijoada para 70 pessoas. Partiram para Portugal no sábado seguinte (14) e aterraram no domingo (15). Nos primeiros meses, até a casa da Quinta da Marinha ficar disponível – estava arrendada a outros brasileiros que entretanto se mudaram para o Estoril –, viveram numa moradia T4 com piscina comum do condomínio, a 700 metros da Casa da Guia. 

Fase experimental na moradia com piscina 

Em abril instalaram-se num condomínio construído entre os 900 hectares mais exclusivos de Cascais: a Quinta da Marinha. As 7 da manhã é a hora de despertar. Leandro prepara-se para fazer "de Uber dos filhos", como quem diz para transportá-los para a escola a partir de um carro familiar Volvo XC 90, comprado recentemente. Não precisa de o blindar, como fazia no Brasil – e ainda assim temia que algum assaltante disparasse com armas à prova de blindagem. "Lá, temos a maior frota de blindagem do mundo. Todos os nossos amigos têm carro blindado, virou um bem de quase necessidade", justifica. Fernanda encara a medida como um seguro de vida. 

Sem recear o carjacking, Leandro leva Vinicius a uma escola privada. Fica a menos de 10 minutos de carro. A seguir, conduz João a um colégio internacional (há sete num raio de 15 minutos de automóvel). "Em dezembro, eu e o meu marido viemos a Portugal para escolher as escolas: a do nosso filho mais novo foi das mais bem classificadas no ranking, tem árvores e uma horta", conta Fernanda. 

Enquanto os miúdos estão na escola, os pais trabalham a condição física. Jogging, ténis – ele destacou-se num campeonato da modalidade na Quinta da Marinha – e ginásio preenchem a rotina diária. Fazem duas horas, pelo menos. Na "academia" do complexo encontram mais 20% de brasileiros como eles. "E a cada dia chegam mais", diz Leandro. 

O T5 com jardim e piscina onde a família Matta vive desde 15 de abril está em fase experimental. Isto é, em modo de arrendamento com opção de compra. Caso não se verifiquem problemas de maior na casa (por exemplo, graves infiltrações), o economista fecha negócio com o proprietário: pagará 1,5 milhões de euros pelo imóvel, descontando o valor das rendas pagas até à escritura. Tudo indica que ela se concretizará, com Fernanda a tornar o ambiente mais acolhedor. Tem a ajuda de uma decoradora. 


De segunda a sexta-feira, das 9h às 17h, o serviço doméstico é assegurado por uma empregada brasileira. Ao sábado, por uma portuguesa. Fernanda elogia o trabalho de ambas e recorda os tempos da casa de Niterói, com duas empregadas a trabalhar em simultâneo. Não venderam o imóvel, que é limpo uma vez por semana por uma mulher a dias. "Em agosto vamos lá passar férias." 

O ciclo migratório do Rio de Janeiro para Cascais propaga-se pelo passa-palavra, pelas redes sociais e por sites da especialidade. Por exemplo, o Já Fez as Malas?, que se apresenta como o primeiro dedicado exclusivamente a ajudar brasileiros a emigrar, tem guias actualizados sobre o custo de vida em Portugal, explica como obter a cidadania ou o processo para abrir uma empresa. No berço da bossa nova – género musical lançado na década de 50 na zona sul carioca, por João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes –, o glamour de outros tempos dá lugar à incerteza. Sequestros-relâmpago, agravados pelo clima de instabilidade política e pelo processo de corrupção Lava Jato, deixam a nata da sociedade em estado de alerta. Quem pode, sai. Quem não pode – por exemplo, médicos com uma carteira de clientes de décadas – fica a contragosto. Fabiana Barcellos, Fabi para os amigos, 35 anos, ouve cada vez mais queixas dos conterrâneos e incentiva-os a mudarem-se para Cascais. A cidade que a acolheu há oito anos é agora um remake do Rio. "O que mais me agradou aqui foi ter muitas praias." Aos fins de semana pratica uma hora diária de jogging no paredão da Marginal, à semelhança do que fazia junto à praia de Itacoatiara (Niterói). 


Sempre em festa, sorridente e com um corpo ginasticado, a empresária que representa a marca de fitness brasileira CCM tem uma agenda social preenchida. É assídua do restaurante do chef Sergi Arola (premiado com uma estrela Michelin), no resort Penha Longa, dos brunchs de sushi e sashimi no Farol Design Hotel e dos churrasquinhos refinados aqui e ali em casa de amigos brasileiros. "Estamos formando um novo Rio de Janeiro em Cascais", diz. 


Grupo do WhatsApp: Zucas em Cascais 

O seu barómetro é a aplicação WhatsApp, onde criou o grupo feminino Zucas, no fim de 2016, para funcionar como uma rede informal de interajuda. Trocam informações sobre as melhores escolas, baby-sitters, planos de saúde e salões de beleza da zona.

Entre junho e julho, o fluxo aumentou. "De 17 mulheres casadas passámos a 21, sobretudo cariocas. Elas chegam sem amizades e sem referências." No sábado, 13 de maio, quando o Benfica foi tetracampeão, o papa despediu-se de Fátima e Salvador Sobral venceu a Eurovisão, Fabiana marcou o primeiro evento das Zucas: um jantar no restaurante Papagayo, no Urban Beach, em Santos. "Foram 28 pessoas, foi a primeira de muitas noites das Zucas. Dançámos até às 3h da manhã." 

A adesão entusiasmou-a e decidiu profissionalizar a rede. Nas últimas semanas, dedica-se a montar a empresa W.H.Y. (We Host You) com outra participante do grupo do WhatsApp, em parceria com escritórios de advogados. A festa de lançamento está prevista para setembro. "Faremos assessoria completa das necessidades dos recém-chegados. Além da recolocação, vamos ter concierge, organizar eventos corporativos para conectar pessoas e ajudar na criação de negócios. O foco são brasileiros e ingleses." 

Fabiana chegou a Cascais em maio de 2009, casada de fresco com Pedro após uma lua demel em Angra dos Reis. Vieram directos para um T3 no condomínio Costa da Guia, porque o empresário, de 42 anos, não consegue viver longe do mar. Sendo praticante de surf há três décadas, diz que o Guincho é o seu santuário. À época, desbravaram caminho: sem amigos, sem surto migratório de luxo e sem apoio das imobiliárias não tiveram a adaptação facilitada. "Quando ainda estávamos no Brasil, mandámos emails para agências para mostrarem casas em Cascais e só uma respondeu. A agente Maria da Luz deu-nos a maior atenção, virou a nossa mãe aqui." 

O primeiro Natal dos desenraizados foi comemorado em casa de Maria da Luz. "O mais difícil foi fazer amizades. Lá tínhamos casa cheia todos os fins de semana e aqui não tínhamos ninguém", conta a ex-personal trainer, que dava aulas em Niterói antes de emigrar. Foi lá que conheceu o marido, formado em Gestão pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, e decidiram agarrar a oportunidade de trabalhar fora: na Europa, o eldorado para os brasileiros, onde Pedro iria representar uma marca desportiva. "Vivi um ano na Califórnia, depois de tirar o curso. Acho que Cascais é parecida. Se tivesse de trocar Cascais por outro lugar seria Califórnia, mas nunca farei isso." 

Há três anos, com o nascimento de Cadu trocaram de casa: uma moradia T3 no Estoril. No último aniversário do filho, o novo círculo de amizades do casal Barcellos foi convidado para a festa. Compareceram 50 pessoas, entre portugueses e brasileiros. 

Família sequestrada no WC 

O fantasma da violência está omnipresente entre estes imigrantes qualificados. Alguns até preferem recomeçar com menos condições em Cascais a viverem em estado de alerta permanente no Rio de Janeiro. "A sensação de sair de casa sem olhar à volta não tem preço", assevera a dentista com dupla nacionalidade (portuguesa e brasileira), Andrea Valporto, de 46 anos. Mudou-se para Portugal em agosto de 2016, num processo-relâmpago de três semanas, e alugou um T3 num condomínio do pacato bairro do Rosário. Apesar das paredes vazias, dos móveis escassearem e do chão ser fora de época (tacos de madeira dos anos 80), sente-se feliz na companhia do marido Frederico, de 47 anos, e dos dois filhos (Igor, de 14 anos, e Eric, de 6). Para trás, deixou outro condomínio, o Novo Leblon, na Barra da Tijuca, com vigilância 24 horas por dia e acesso a todas as mordomias: piscinas, ginásio e restaurante. "Ficávamos dentro de casa e evitávamos sair à noite, mas havia violência a qualquer hora do dia." 


O pesadelo da insegurança de Andrea começou em 1999. Ainda hoje se comove ao falar do telefonema que recebeu na clínica dentária onde trabalhava na época. Uma familiar ligava-lhe em sobressalto a comunicar o sucedido, numa segunda-feira às 9 da manhã. A mãe, o pai (doente de Alzheimer em cadeira de rodas), a avó, a irmã oito anos mais nova e dois empregados estavam bem, mas tinham acabado de ser vítimas de um sequestro no próprio WC de casa. Viviam num bairro da Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, quando entraram três homens armados na ampla residência. Trancaram-nos na casa de banho, enquanto encheram o carro, estacionado à porta, com electrodomésticos e jóias da família. Quando as vítimas fizeram queixa à polícia e se preparavam para descrever os suspeitos para um retrato-robô, estes voltaram à carga através de ameaças de morte para o telefone fixo da casa assaltada. "Não sei se foi um assalto encomendado. Até hoje não conseguimos descobrir. Foi um tempo ruim." 

O retrato-robô ficou por fazer. A mãe dela estava apavorada e a permanência no local tornava-se insustentável pelo medo. Mudaram-se na mesma semana do crime para um apartamento vago da madrinha de Andrea, na extensa avenida da Barra da Tijuca. Depois, venderam a casa da Ilha do Governador e estabeleceram-se definitivamente na zona nobre do Rio. Foi nessa altura que Andrea conheceu Frederico, por intermédio de amigos comuns, num concerto do festival Rock in Rio. Ele era gestor financeiro, trabalhava na multinacional de media Thomson Finantial e andava em trânsito entre Nova Iorque e Rio de Janeiro. Apaixonaram-se, casaram-se em 2002 e tiveram o primeiro filho (Igor) no ano seguinte. O segundo filho, Eric, nasceu há seis anos. 

Levavam uma vida desafogada para o padrão do brasileiro comum. Os passeios aos paraísos próximos (Angra dos Reis, Búzios, Teresópolis) aconteciam em qualquer altura do ano. As festas em casas de amigos na mesma condição eram frequentes. Os almoços fora decorriam uma vez por semana e não se coibiam de investir na educação dos filhos (mais de 1.000 euros/mês por ambos) e num seguro de saúde familiar (600 euros mensais). "A escola pública era péssima, era raro um aluno passar à universidade. Os hospitais não funcionavam, às vezes faltava material básico como gaze e algodão. Só recorremos ao serviço público de saúde para a vacinação dos filhos", conta Andrea.

Às despesas do orçamento acresciam as prestações da hipoteca na casa, praticamente paga até 2015. Ano em que a médica decidiu montar uma clínica dentária, com duas sócias, num subúrbio do Rio de Janeiro. O marido tornou-se o seu braço-direito: saiu do mercado financeiro para se tornar administrador do consultório. O negócio correu mal porque as duas sócias de Andrea zangaram-se e o impacto da crise económica reflectiu-se na procura dos pacientes. "Os funcionários públicos deixaram de ir à clínica. O Estado quebrou", conta Frederico. O gestor só viu uma saída: "Ou a gente vai embora com uma reserva para se virar em Portugal ou não vai mais." 

Cascais simbolizava o recomeço. Mas um mês antes de emigrarem o medo voltou a apoderar-se da dentista, em julho de 2016, quando estava parada num engarrafamento às 15h junto ao Barra Shopping (um dos maiores centros comerciais da cidade). "Estava dentro do carro e tudo parado por causa de umas obras na rua. Quando olhei para o lado, vi um cara numa mota a apontar uma arma à cabeça de um senhor num carro ao lado. Aí desesperei, imaginei que ia haver um arrastão. Não havia policiamento. O senhor foi assaltado, mas não mataram ninguém. Foi um dos grandes motivos da nossa vinda, a qualquer hora do dia ou da noite acontecem assaltos." 

Hoje em dia, Andrea e Frederico estão serenos. "Só trouxemos roupa e dinheiro." Em janeiro, investiram 20 mil euros no franchising de uma loja da marca Glood, uma mercearia com quatro mil produtos de todo o mundo. O estabelecimento fica numa praça central de Carcavelos e está a ter boa adesão. Em junho, Andrea iniciou outra etapa: a entrega da documentação para o processo de equivalência em Medicina Dentária. Não desiste de exercer a especialidade em Portugal, mesmo que para isso tenha de voltar à universidade, em setembro próximo, após 22 anos de experiência. "Não quero fechar esta porta. O Frederico vai ter que administrar sozinho a loja." 

A nova vida de um DJ em família 

Levy Gasparian, 47 anos, está mentalizado para a fase que se aproxima: a de empreendedor solitário, que trabalhará diariamente num espaço de coworking no Saldanha, em Lisboa, alugado por 150 euros mensais. Recém-chegado em maio, na companhia da mulher Tatiana (designer freelancer de 41 anos) e dos dois filhos (Gabriel, de 9 anos, e Sofia, de 5), o DJ brasileiro com 30 anos de experiência não se importa de deixar o Rio de Janeiro e um negócio em crescimento. 


É o pai da Rádio Ibiza Sensorial, um pequeno império da música ambiente com 50 funcionários que abriu com vários sócios há 10 anos. Basicamente, criou um sistema de software com músicas e cheiros personalizados para 3.500 lojas em 14 países. "Diziam-nos que o ambiente de trabalho era muito cool, que parecia a Google do Rio de Janeiro", conta o fundador. Momentos antes de dar a entrevista à SÁBADO, aproxima-se da aparelhagem da sala e selecciona a música adequada: Thievery Corporation, banda de electrónica norte -americana que foi ao festival Cascais Groove a 25 de Junho passado. 

Os sócios da Rádio Ibiza, que factura cerca de 5 milhões de reais por ano (o equivalente a 1,4 milhões de euros), mantiveram-se na casa-mãe em Copacabana, mas Levy decidiu emigrar para Portugal na perspectiva de internacionalizar a marca na Europa. Tatiana criará o logotipo, depois dedicar-se-á aos seus projectos. "Abri mão da vida lá. A nova geração de brasileiros é de empreendedores no sentido amplo." 

Sem olhar para trás, despediu-se do apartamento com vista para o bosque, na Barra da Tijuca. Às 7 da manhã, já não corre na praia a cinco minutos de casa; nem anda de bicicleta no Parque Nacional da Tijuca – o mesmo local onde há dois anos vários ciclistas foram assaltados e ficaram reféns durante mais de duas horas. "Eles [os assaltantes] pareciam estar drogados [...], ameaçaram matar-me", relatou uma das vítimas ao jornal online O Globo, na edição de 4 de maio de 2015. Um clima de insegurança que Levy dispensa, até porque, à semelhança de Andrea, ficou traumatizado com um assalto que fizeram à casa de família na Tijuca, em 1984. "Dez pessoas entraram com 20 armas, levaram móveis e roupa que encheram dois carros. Há muita gente a deixar o Brasil por causa da violência, é preciso uma geração inteira para fazer a diferença e nessa altura já não estarei vivo." 

Os filhos estudam em escolas públicas, do bairro de Alvalade, onde a família está instalada. Vivem num simpático T3, com 120 metros quadrados, mas não perdem de vista o objectivo: mudarem-se para Cascais dentro de um ano e meio, quando a fase de internacionalização na Europa estiver consolidada. 



[Fonte: www.sabado.pt]

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