Crítica literária mais respeitada da Argentina, Beatriz Sarlo, em seu livro A Cidade Vista, faz por Buenos Aires o que Walter Benjamin fez por Paris ao escrever sobre as transformações da cidade francesa nos tempos do barão Haussmann. Se Benjamin, em Passagens, analisa o impacto da reforma urbanística de Haussmann, Beatriz Sarlo, em A Cidade Vista - Mercadorias e Cultura Urbana, mostra o ocaso urbanístico de Buenos Aires, chamada no passado de a Paris sul-americana - o que não faz o mínimo sentido, diz ela, ao lembrar que, hoje, ela é a cidade dos pobres e dos migrantes.
Por Antonio Gonçalves Filho
Beatriz Sarlo concedeu uma entrevista por telefone ao Caderno 2. Nela, a
ensaísta fala da influência de Benjamin e Barthes, do crescimento desordenado
de Buenos Aires e dos movimentos de migração que estão alterando o perfil da
cidade.
Outra Boca. O bairro mais famoso da cidade por Zuviría
A senhora já disse que a origem de A Cidade Vista está
na errância. Isso me faz lembrar o clássico de Walter Benjamin sobre Paris,
Passagens, que elege a figura do flâneur para descrever as transformações
urbanísticas da cidade na época do barão Haussmann. Como Benjamin influenciou
sua obra?
Benjamin e Barthes foram dois escritores que marcaram minha
formação. Era ainda jovem quando li Mitologias, de
Barthes. Ele foi o primeiro a olhar com atenção para as coisas cotidianas,
escrevendo tanto sobre a receita da cozinha da Elle como sobre
atores de filmes de gladiadores. São influências profundas e permanentes. O
olhar de Benjamin sobre a produção do meio urbano está no cerne do primeiro
capítulo de meu livro, que descreve como a circulação de mercadorias define o
uso da cidade e produz inovações no espaço público.
Seu livro é fruto de suas andanças por Buenos Aires para escrever
sua coluna dominical na revista Viva. Como a senhora classificaria
esse olhar: uma crônica urbana ou ensaio intelectual?
Minha coluna na Viva não era
lida por nenhum dos meus amigos intelectuais. Era uma situação paradoxal.
Sentia-me extremamente livre por um lado e, por outro, presa a um compromisso.
Nem todas as colunas eram sobre a cidade - digamos que só 25% dos textos
falavam de Buenos Aires, que passou por vários processos de transformação desde
que eu era jovem. Fiz esses passeios para recolher material num momento de
crescimento acelerado, em que eram notáveis as consequências da crise dos anos
1990. Buenos Aires começa, enfim, a se parecer com uma cidade latino-americana
depois dessa época, quando a pobreza se instala. Esse quadro provocou em mim um
choque, digamos, benjaminiano.
Como compara a Buenos Aires contemporânea com a cidade que
conheceu na juventude?
Nos anos 1960, Buenos Aires não era uma megacidade. Era de
tamanho médio e com aparência europeia. Mas não era Paris, uma comparação um
tanto absurda. No máximo, lembrava Madri, mas já estava rodeada por um cinturão
de bairros pobres, embora seus habitantes adultos a percebessem como uma cidade
segura. A deterioração da segurança urbana se acentuou, apesar de a cidade não
ter crescido tanto assim. Não é uma megalópole como São Paulo. De todo modo, na
Grande Buenos Aires, a violência é um dado inegável e há também o crescimento
das migrações. Na cidade onde nasci, há mensagens públicas que não entendo,
escritas em outras línguas (como o coreano).
Buenos Aires enfrenta hoje um problema semelhante ao de São Paulo,
o dos imigrantes clandestinos e escravizados por outros estrangeiros. Como a
senhora vê essa questão?
São Paulo e Buenos Aires sempre tiveram uma migração forte, e
não só portuguesa ou espanhola. Buenos Aires é uma cidade de estrangeiros,
formada por imigrantes desde o século 19. Antes eram os europeus e asiáticos;
hoje são os bolivianos e paraguaios. No começo do século 20, eles se integravam
à cidade, mas, na segunda onda de imigração, nos anos 1930, os problemas
urbanos começam a se agravar com as chamadas ‘villa miseria’ dentro da cidade,
que se expandem nos anos 1950. Na terceira onda, migrantes da segunda geração sofrem
mais discriminação que os coreanos, os polacos de hoje. Eles já chegam com
algum dinheiro e certa escolaridade, colocando seus filhos em boas escolas. Em
Buenos Aires, como em São Paulo, eles exploram igualmente os bolivianos, mas eu
diria que também há bolivianos escravizando outros bolivianos.
A senhora cita Pasolini ao falar do subúrbio de Buenos Aires.
Entre outras coisas, ele apontou o cheiro do ferro deteriorado, da ferrugem,
como o odor típico dessas vilas miseráveis e disse ainda que a ânsia de consumir
do jovem suburbano se equivale à ânsia de ser consumido. Entre as formas de
consumo que a senhora apresenta em A Cidade Vista, especialmente o
shopping center, alguma delas pode forjar uma nova comunidade?
Não creio. O que a marca, a grife, faz é destroçar a comunidade.
A ideia da diferença no meio urbano é uma das causas da criminalidade, da
insegurança. O garoto pobre quer um tênis de marca igual ao do garoto classe
média, não se contenta com outro. Assim, o shopping não fortalece, mas destrói
os laços da comunidade. Por outro lado, os ambulantes necessitam da
solidariedade para sobreviver. Explorados por capitalistas, donos das
mercadorias contrabandeadas que vendem, eles se concentram justamente no lugar de
chegada dos pobres, nas estações ferroviárias, para se proteger.
A senhora evita falar num tom nostálgico quando se refere ao
passado mítico de Buenos Aires. Como o escritor Robert Arlt, que gostava de
arranha-céus e era avesso à nostalgia, a senhora não se incomoda com a
descaracterização de Buenos Aires?
A tecnologia é como um ácido que cai sobre uma flor. A mim me
interessam as paisagens distópicas, particularmente o impacto que a tecnologia
tem sobre o meio urbano. Meu livro não tem nada de nostálgico. Não há nada a
reconstruir.
A cidade em busca de sua identidade é o tema da ensaísta
Dividido em cinco capítulos, A Cidade
Vista se ocupa tanto dos shoppings como dos ambulantes de Buenos
Aires, para analisar a “cidade das mercadorias” que, naturalmente, tem seus
marginais. O segundo capítulo, aliás, se ocupa deles. Durante quatro anos, a
escritora Beatriz Sarlo percorreu a cidade com uma caderneta e câmera digital,
tirando centenas de fotos. Concluiu que a capital portenha sempre foi uma
cidade de estrangeiros, de imigrantes vindos da Europa, da Ásia e, hoje, de
países vizinhos como a Bolívia e o Paraguai. A eles é dedicado o terceiro
capítulo, em que analisa o caráter polifônico e poligráfico da Buenos Aires do
século 21.
No quarto capítulo, a professora de literatura exercita seu lado
crítico, buscando nas representações da cidade (fotos, pinturas) o que os
artistas descobriram dela. No último capítulo, analisa imagens como as de
Facundo de Zuviría (autor da foto desta página) para descobrir qual é, afinal,
a identidade que Buenos Aires diz ser a sua.
A Cidade Vista - Mercadorias e Cultura Urbana.
Tradução: Monica Stahel.
Editora: WMF Martins Fontes (240 págs., R$ 39,90)
[Fonte: www.estadao.com.br]
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