terça-feira, 26 de março de 2019

O que aconteceria se os museus europeus tivessem que devolver a arte colonial espoliada?

Holanda e França decidem devolver obras de arte aos seus lugares de origem, mas a questão se estende a países de quase todo o continente


Escrito por Héctor Llanos Martínez
Passear pelo Museu Britânico, em Londres, é o equivalente a dar a volta ao mundo. É o lugar mais visitado em todo o Reino Unido, mas na verdade as pessoas vão a ele para admirar um pedaço da Grécia antiga, conhecer a Pedra Roseta, uma estela de granodiorito que desvendou os hieróglifos do Egito Antigo, ou o Iraque anterior à guerra de 2003. O que seria dos grandes museus europeus se começassem a devolver a arte saqueada no passado para os seus países de origem? Alguns deles já estão dando pequenos passos nessa direção. O Rijksmuseum, de Amsterdã, planeja resolver o espólio colonial no Sri Lanka e na Indonésia, devolvendo as peças de sua coleção que foram roubadas ou saqueadas.
“Sabe-se que muitas coleções do Louvre, do British Museum e muitos outros museus europeus se nutriram de obras que inicialmente não pertenceriam a eles”, dizem a Verne por email as especialistas em patrimônio cultural Raquel García Revilla e Olga Martínez Moure, da Universidade à Distância de Madri (Udima).
Um canhão de bronze, prata e rubis do reino de Kandy, do Sri Lanka, que o Rijksmuseum pretende devolver

Para analisar essas situações, ambas recordam as palavras do arqueólogo Sam Hardy: “A retenção de antiguidades que foram extraídas mediante expedições de punição [ver box abaixo] é uma intolerável perpetuação da violência colonialista”.
Este ajuste de contas pendentes do museu holandês se soma ao do governo da França. O presidente Emmanuel Macron abriu a porta no final de 2018 para a entrega de dezenas de peças de arte africana expostas em museus do país. As nações prejudicadas às quais pretende restituir as peças são o Mali, o Benim, a Nigéria, o Senegal, a Etiópia e o Camarões, por meio de um relatório abrangente que defende a restituição artística.
É uma mudança de padrão até agora inédita, que contrasta com a atitude escorregadia que costumam adotar grandes instituições, como o próprio Museu Britânico. Seu principal conflito é com a Grécia, que há décadas reivindica mármores e estátuas do Partenon de Atenas.
Um embaixador britânico, Lord Elgin, arrancou no século XIX parte do friso do grande ícone arquitetônico de nossa civilização e o levou ao Reino Unido para acabar vendendo-o a seu governo. Se ele se saiu bem em sua jogada disparatada foi graças a seus contatos poderosos nos dois países.
A Espanha é uma das antigas potências europeias com menos material roubado, embora também tenha uma reivindicação pendente. A Colômbia solicita a devolução do tesouro Quimbaya, um grupo de objetos pré-colombianos expostos no Museu da América, em Madri. Embora tenha sido um presente do presidente Carlos Holguín para a rainha María Cristina em 1893, o país argumenta que o político colombiano deu as obras ilegalmente, não tendo pedido permissão ao Congresso.
Angola reivindica algumas de suas esculturas a Portugal, e o conflito sobre o busto de Nefertiti entre a Alemanha e o Egito se mantém há décadas. O México também pede à Áustria o Cocar de Moctezuma, que foi parar no Museu Etnográfico de Viena.
Turquia quer seu patrimônio de volta
Da esquerda para a direita: esculturas do Benin, no Museu do Quai Branly, de Paris/(GERARD JULIEN /AFP/GETTY);
estátuas mbali de Angola, no Museu Nacional de Etnologia, de Lisboa;
e o busto egípcio de Nefertiti, no Neues Museum Berlin./ (WIKIMEDIA COMMONS)

Há vários países batendo na porta do museu londrino nos últimos anos. De fato, recebe reivindicações de quase todos os continentes: Benin, Iraque, Chile, Egito e Turquia lutam para recuperar seu patrimônio alojado no centro de Londres.
A avalanche de petições é tamanha que os britânicos iniciaram em outubro de 2018 uma série de palestras mensais em que explicam como muitas de suas obras chegaram a suas instalações, para mostrar que nem todo o seu catálogo é resultado de saques.
Raquel García Revilla e Olga Martínez Moure, professoras do Curso de Empresas e Atividades Turísticas da Udima, destacam o empenho da Turquia na recuperação de seu legado cultural. “Vem fazendo isso desde 1934, quando reivindicou várias esfinges de Hattusa (a capital do Império Hitita), que estão atualmente em Berlim.”
O governo turco criou uma comissão para atingir o seu objetivo. Em 2012, iniciou uma campanha de pouco sucesso com a qual também requereu o retorno de obras de museus de Nova York, Berlim, Paris e Los Angeles. Um dos requisitos exigidos dos países que reivindicam sua arte à Europa é “garantir que tenham as condições necessárias para o tratamento e a manutenção das obras recuperadas”, lembram os especialistas em patrimônio.
Um dos argumentos dos museus para não devolver as obras a seus países de origem é o risco de deterioração durante a viagem de volta e o questionamento sobre a possibilidade de essas nações de conservá-las e expô-las de maneira apropriada.
García Revilla e Martínez Moure destacam que países como o Reino Unido e a França não podem se desincumbir da proteção dessas obras caso deixem de expô-las em seu território. “O máximo cuidado com as obras é responsabilidade de todos e os governos têm de zelar por isso. Lembremos que a arte é a sublimação do patrimônio comum, por isso todos devemos nos envolver neste processo”, dizem elas.
Não é um assunto do passado
Por expedições de punição, como mencionou o arqueólogo Sam Hardy, se entendem, além daquelas praticadas nas colônias, as que ocorrem durante um conflito bélico. A mais proeminente é o saque dos judeus pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, mas não é a única nem a mais recente.

O próprio Sam Hardy, especialista em tráfico ilícito de antiguidades, explicou em 2015 a EL PAÍS o saque que estava ocorrendo na Síria, um país incapaz de proteger sua arte diante da urgência da guerra. “As redes criminosas e as máfias estão explorando o caos para saquear e roubar. Grupos armados estão saqueando peças e contrabandeando-as para financiar a compra de armas ou diretamente para trocá-las por elas”, relatou.

Hoje, após este saque sistemático, muito pouco se sabe sobre este patrimônio. Agora resta apenas uma escavação ativa no país, mas quando a guerra começou, em 2011, havia quase 200 equipes internacionais trabalhando lá. Nestes casos, ao contrário de um espólio colonial, nos deparamos com um patrimônio que é crucial para entender a história da humanidade e que acaba perdido, sem possibilidade de recuperação”, dizem as especialistas em patrimônio cultural Raquel García Revilla e Olga Martínez Moure.

[Fonte: www.elpais.com]

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