segunda-feira, 26 de junho de 2017

Os autores secretos

Um livro traduzido é sempre uma obra conjunta

Escrito por José Eduardo Agualusa

Estou em Dublin pela primeira vez. Não sei muito sobre a cidade, para além do que li nos livros de alguns dos nomes mais importantes da literatura mundial que aqui nasceram e viveram, como James Joyce, Oscar Wilde, George Bernard Shaw ou Samuel Beckett. Nem deve existir outra cidade no mundo, de dimensão semelhante, que tenha produzido tantos grandes escritores. Passeando pela cidade, reparamos num pub, o Davy Byrne’s Pub. Sim, asseguram-nos, é o mesmo onde Leopold Bloom tomou um copo de vinho e comeu uma sanduíche de queijo. Ainda há poucos dias, a 16 de junho, se festejou na cidade o Bloomsday, dedicado a homenagear o famoso personagem de “Ulysses”. Leopold Bloom é, aliás, o único personagem literário a ter um dia com o seu nome.

Daniel Hahn, o meu tradutor inglês, comentou, brincando, que todas as estátuas erguidas em Dublin representam escritores. Não serão todas, mas são, certamente, a maioria. Em todo o caso, uma cidade que tem mais estátuas de escritores que de políticos é certamente um lugar muito recomendável.

Nos últimos dias tenho conversado com Daniel sobre tradução. Pode dizer-se de um livro que está bem traduzido quando os leitores nem sequer se apercebem da presença de um tradutor, ou seja, quando o livro parece ter sido escrito diretamente naquele idioma. O melhor tradutor, portanto, é invisível. Mas será mesmo? Talvez não inteiramente. Daniel defende — e eu acho que ele tem razão — que o tradutor vai criando o autor à medida que o traduz.

O escritor espanhol José Manuel Fajardo, o qual, como muitos outros escritores, acabou revelando-se também um excelente tradutor, disse-me algo semelhante: “Imagino cada escritor que traduzo como se fosse um personagem, com um determinado estilo. Esforço-me por ser aquele escritor, da mesma forma que, quando escrevo um romance, me esforço por ser um determinado narrador”.

Daniel Hahn tornou-se tradutor com um dos meus primeiros romances, “Nação crioula” (2007), e desde então traduziu outros quatro. Ao fim de todos estes anos, é suposto que os meus livros já tenham adquirido uma dicção própria em língua inglesa. Isso não aconteceria, é claro, se cada romance tivesse sido trabalhado por um tradutor diferente.

Um bom exemplo de como os tradutores reinventam os livros é precisamente o “Ulysses”, de James Joyce. No Brasil, o “Ulysses” tem três traduções: a de Houaiss, de 1966; a de Bernardina da Silveira Pinheiro, publicada em 2005; e a de Caetano Galindo, publicada em 2012. O livro é o mesmo. E não, o livro não é já o mesmo. Cada uma dessas versões tem uma espécie de cor própria, a tal voz a que se refere Daniel Hahn, ora mais gongórica (Houaiss), ora mais contida e acadêmica (Bernardina), ora mais colorida (Galindo), que dá ao livro uma personalidade diversa.

Imaginemos um escritor com uma obra extensa, complexa mas coesa, como, por exemplo, o português António Lobo Antunes, que já vai, se contei bem, em 27 romances — fora os excelentes livros de crônicas. Seria muito diferente ler todos esses livros numa outra língua, traduzidos pela mesma pessoa, ou traduzidos por diferentes tradutores-autores. Imagino que um leitor que tentasse ler esses romances, um após o outro, cada qual de um tradutor diferente, poderia ficar com uma sensação de estranheza, uma impressão, ainda que muito sutil, quase inconsciente, de que aqueles livros não poderiam ter sido escritos pela mesma pessoa. Ou de que o autor seria levemente esquizofrênico.

Na época em que a sua tradução foi lançada, Caetano Galindo deu uma entrevista na qual assume, com notável coragem, o papel de tradutor-autor: “Quando eu dou de presente pra alguém um livro que traduzi, costumo escrever que aquilo é ‘um livro de fulano, escrito por mim’. Uma tradução, em diversos sentidos muito importantes, foi escrita pelo tradutor. É ele o responsável pelas escolhas que definem o texto final. É claro que você tenta evitar que as suas idiossincrasias penetrem demais o texto. Mas, para começo de conversa, é preciso ‘saber’ quais são elas! Mas o ‘Ulysses’ que sai agora é meu. Tem a minha cara, alguns dos meus vícios e, espero, uma ou outra coisa que se avalie positivamente.”

Acho a posição de Galindo corajosa porque, para um grande número de leitores, o tradutor não pode em caso algum impor uma voz. Para esses leitores, um romance é uma entidade pronta, sagrada, que deveria ser passada de um idioma para outro sem que nada nele se alterasse. No final de um dos debates de que participei, em Dublin, ao lado de Daniel Hahn, uma senhora veio ter comigo muito irritada: “Quando leio um livro seu quero ouvir a sua voz, não a do tradutor”.

Na altura, arrastado pelo redemoinho de gente que queria falar comigo, não soube o que lhe responder. Respondo agora: um livro traduzido é sempre uma obra conjunta. Não há como não ser. Normalmente, um escritor não escolhe os tradutores. Se tiver sorte, tal parceria é para a vida. Se tiver mesmo muita sorte, como eu tive ao calhar-me o Daniel Hahn, os livros resultantes dessa parceria são tão bons ou ainda melhores do que os originais.


[Fonte: www.oglobo.globo.com]

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