Revirando as minhas anotações, encontrei esta maravilha,
exposta na tela durante um conhecido programa "policial" da nossa TV:
"Médico que se matou acusa urologista por impotência". Parece coisa
de José Simão.
Volta e meia redatores se
traem e empregam o presente em situações em que esse tempo não se justifica, o
que talvez ocorra pela excessiva preocupação, vigente no jornalismo, com a
"cara de velha" que a notícia pode assumir se for empregado o
pretérito perfeito. No título que citei, foi empregado, correta e
inexoravelmente, o pretérito perfeito ("matou"), o que talvez,
inconscientemente, tenha impelido o redator a rechaçar um segundo uso (algo
como "acusou").
Mas seria o caso de usar
"acusou"? A acusação do suicida foi feita só uma vez? Pode ser que
tenha sido assim, sobretudo se esse "acusou" se referisse a algo
formal, como uma denúncia ao CRM. Se não foi assim, a melhor solução é empregar
"acusava", flexão do pretérito imperfeito, tempo verbal cujo valor
básico é justamente o de indicar fato passado de duração indeterminada.
Ao pé da letra,
"imperfeito" é antônimo de "perfeito", que vem do latim e,
também ao pé da letra, significa "feito até o fim". Se o antônimo de
"perfeito" é "imperfeito", deduz-se que
"imperfeito" significa "que não foi feito até o fim", isto
é, "que não está acabado; incompleto, inconcluso", definições que são
as primeiras que o "Houaiss" apresenta.
Moral da história: em "A
felicidade morava tão vizinha que, de tolo, até pensei que fosse minha"
(da antológica canção "Até Pensei", do monumental Chico Buarque), a
forma verbal "morava", do pretérito imperfeito do indicativo, indica
processo passado, duradouro, frequente, de início e término indefinidos.
Voltando ao título
jornalístico, o presente ("acusa") poderia ter sido substituído pelo
pretérito imperfeito: "Médico que se matou acusava urologista por
impotência". Com isso, ficaria claro que as acusações eram repetidas,
frequentes, constantes.
Talvez caiba aqui uma
observação importante, para abortar uma ideia que talvez já esteja na cabeça de
alguém. Explico: volta e meia, "especialistas" em língua saem por aí
dizendo que não se pode dizer algo como "Eu volto amanhã",
"Chego em 40 minutos" ou "Vou para lá em 2016". O
"argumento", mais do que "científico"? Ora, esses
"especialistas" dizem que, se o processo se concretizará no futuro, o
tempo verbal adequado é o futuro. Bobagem.
Se existe uma marca de futuro
na frase, o tempo verbal futuro pode ser substituído pelo presente, com o qual
se ganha justamente a ideia da certeza, da confirmação, da atualização. Nos
exemplos vistos, as marcas de futuro são, respectivamente, "amanhã",
"em 40 minutos" e "em 2016". E o futuro poderia ter sido
empregado? Como afirmei no início deste parágrafo, o futuro pode ser
substituído pelo presente. Eu disse "pode" e não "deve",
portanto "Chego em 40 minutos" ou "Chegarei em 40 minutos"
são construções igualmente possíveis e registradas, seja no padrão formal, seja
na oralidade.
Esses
"especialistas" são os mesmos que, terminada a eleição, ressuscitaram
o "se Dilma Rousseff não foi 'estudanta', não pode ser presidenta".
Como já afirmei mais de uma vez neste espaço, não foi ela que inventou a forma
"presidenta", que tem registro em dicionários publicados há mais de
um século (o de Cândido Figueiredo, por exemplo). É isso.
[Fonte: www.folha.com.br]
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