O "era uma vez..." já era. Foi substituído por "baseado em fatos reais!" Grandes narrativas? Imagina, ninguém mais lê Guerra e paz.
As narrativas agora são fragmentadas ou performáticas, como os novos
tempos, como manda a tecnologia, como afinal é o sujeito contemporâneo.
No lugar do romance do século XIX, que morreu e morreu, a antinarrativa.
Será?
Se você intui que não é bem assim, mas anda envergonhado de admitir que
gosta de ler uma boa ficção (se é flagrado, jura não se tratar de
realismo), vá ao cinema. Não, não é para constatar que as tramas bem
urdidas ainda imperam na linguagem da telona, mas para se deliciar com
uma ode à narrativa tradicional.
Em Dentro da casa, o diretor François Ozon vai além da homenagem
distanciada e aponta também caminhos para a narrativa contemporânea,
essa que parece constrangida de começar com "era uma vez" e por isso se
disfarça de história "real" ou sem narrador. Há camadas narrativas para
todos. Sem a arrogância das piscadelas para os eruditos (raramente
discretas, já que autores e críticos adoram exibir sua intimidade com a
alta cultura), o filme é repleto de referências e citações. Mas quem
"apenas" se deixar ser fisgado pelo enredo não aproveita menos: talvez
estes "inocentes" sejam os verdadeiros homenageados.
O ponto de partida é um liceu francês, mas não qualquer um: chama-se
Gustave Flaubert. A tradição e a modernidade estarão em tensão todo o
tempo, dando o tempero cômico, enquanto a trama, que se constrói
exibindo todos os seus truques narrativos, fisga os
expectadores/leitores. Não à toa o filme foi sucesso de público na
França, com 1,2 milhão de pagantes, uma cifra mais próxima das comédias
ligeiras do país do que dos filmes autorais de seus cineastas.
Na volta às aulas, somos apresentados a Germain (Fabrice Luchini), um
professor de literatura apaixonado pelas narrativas clássicas.
Corrigindo redações nas quais os alunos descrevem seus fins de semana
como resumidos a pizza e televisão, aqui símbolos do mau gosto da
indústria de consumo (na França, talvez pizza mais que televisão), o
professor vai encontrar, e se deixar seduzir, pelo texto de um aluno,
Claude, que se revelará uma espécie de duplo seu.
Aprendiz de escritor, Claude (Ernst Umhauer) senta-se sempre no fundo da
sala, como seu mestre fazia nos tempos de estudante, para poder observar
os outros, ter o melhor ponto de vista de um narrador. Germain, que se
confessará um escritor fracassado, projeta-se no aluno-escritor, e ambos
acabam por construir uma narrativa fundada na tradição (thriller no cinema; folhetim na escrita): uma narrativa-crítica da classe média. Como fez Gustave Flaubert.
A figura do escritor francês paira sobre o filme. Além da fachada do
liceu, seu nome está na capa dos livros indicados pelo professor, e sua
obra projeta-se na personagem Esther, uma Madame Bovary moderna e
igualmente entediada em seus valores pequeno-burgueses. A beleza blasé
de Emmanuelle Seigner lhe cai como luva. A classe média, seus
personagens anônimos e comuns, exerce sobre Claude e seu professor o
mesmo efeito da burguesia sobre os escritores e artistas da segunda
metade do século XIX. O mesmo misto de desprezo e fascínio que levou
Flaubert a escrever Madame Bovary.
Claude "adentra a casa" da classe média por intermédio do colega de
classe Raphael, estereótipo do indivíduo idiotizado pela cultura de
massas. É na observação apurada da rotina de sua casa e sua família, a
mãe Esther e o pai também Raphael, que se construirá a literatura de
Claude.
Nota-se no filme a ênfase dada aos riscos inerentes à liberdade
democrática que caracteriza a escrita. O professor, a quem caberia a
autoridade do enunciado numa relação hierárquica, perde o controle sobre
seu aluno aprendiz, sobre o que ele escreve, sobre quem vai ler seus
capítulos. O perigo está no ar. O valor atribuído à escrita é tão grande
na trama que sua prática determina todos os rumos.
Quando Germain, assustado com as consequências, orienta seu aluno a sair
"da casa", que é sua fonte de inspiração -, Claude se nega. E o culpa
pelo estímulo literário: "Foi ideia sua". O professor continua lhe
emprestando livros, e tenta manter-se como crítico distanciado da trama
através de lições de narratologia. As classificações e os esquemas
narrativos, que remetem às primeiras teorias de Aristóteles, são
utilizados como tentativa de enquadrar a escrita produzida pelo pupilo,
numa referência à ânsia classificatória que acompanha os estudos
literários desde a época de Flaubert.
Germain busca, em vão, disciplinar Claude com a mediação do seu saber e
questionamentos sobre estilo narrativo. Ora, se ele quiser satirizar o
comportamento da família, estará criando uma paródia! Zombar dos
personagens, como se fosse superior a eles, é fácil, diz o professor:
"Difícil é não julgá-los, como fez Flaubert". Claude, ao mesmo tempo que
aprende, ironiza cada lição. Induzido a adotar o gênero realista,
escreve o capítulo seguinte repleto de números e descrições.
As técnicas de manipulação da narrativa escrita são potencializadas
pelos recursos do cinema: também Ozon parece seguir e rir das lições, ao
utilizar uma trilha sonora de suspense quando o aluno testa o gênero de
mistério, ou a diluir a imagem de Esther nas nuvens do céu quando
Claude recorre à poesia para sensibilizar a personagem. "Metáforas são
uma bomba atômica numa casa de classe média onde nunca entrou a poesia",
diz o professor.
O desvelamento dos truques narrativos (o quadro negro chega a ser
utilizado para mostrar o diagrama do conflito que prende o leitor à
trama, a exemplo da manipulação utilizada por Sherazade para poupar sua
vida) faz emergir a crítica contemporânea à validade das grandes
narrativas realistas, já sem a função do passado de dar sentido às ações
humanas.
Se a chamada crise da representação acirrou o debate entre narrativistas
e antinarrativistas, Ozon de certa forma dá uma resposta pessoal à
questão, por meio de sua prática artística: agradou o público e
entusiasmou os críticos com uma trama linear, que lança mão de
artifícios clássicos da narratologia e prende a todos pelo conflito e
pelo suspense. Em vez de se encabular por estar sendo "artificial", se
apropria com ironia das discussões e dos impasses que rondam as artes em
geral.
Isso se dá por meio da personagem adoravelmente encenada pela inglesa
Kristen Scott Thomas. Jeanne, mulher do professor, administra uma
galeria de arte e incorpora o discurso afiado da contemporaneidade.
Corrige, por exemplo, as novas donas do negócio (gêmeas que ela
reconhece como provincianas sem gosto, que deveriam ter herdado uma delicatessen
em vez de uma galeria), que lhe perguntam sobre o que a obra de uma
artista chinesa representa: "Não se trata de 'representação', mas de
'apresentação'".
Só que, embora negue a possibilidade de representação do real, Jeanne é
uma leitora apaixonada da literatura "realista" de Claude, a espécie de
leitor que funciona como coautor da obra: ela preenche as lacunas com
sua imaginação, a ponto de "ajudar" Ozon a transformar capítulos em
cenas do filme. Em suas contradições, a esposa do professor personifica a
crise da arte, uma arte que não quer representar, mas busca seu futuro
arrastando consigo a tradição.
O nome de sua galeria, O labirinto do Minotauro, assusta os
clientes, diz ela, e de seu comentário pode-se depreender tanto o temor à
fera da mitologia grega quanto o estranhamento do público médio em
relação à cultura erudita. A escrita hermética dos catálogos da galeria é
ridicularizada pelo professor e até por ela mesma, que parece tentar se
convencer sobre o valor das experiências antinarrativas.
Além da artista chinesa (que ela comenta ter nascido na verdade em Los
Angeles!), criadora de imagens aleatórias no computador, outro exemplo
de arte moderna seria a "pintura verbal", uma gravação na qual o artista
descreve uma pintura que será destruída em seguida. "Ele está zombando
da obsessão da indústria cultural com objetos tangíveis", ela defende,
ao mesmo tempo em que tenta desesperadamente tornar seu "comércio
viável".
A seriedade de Jeanne ao descrever a intenção de cada obra de sua
galeria arranca risos da plateia atenta àquela camada narrativa, mas
vale lembrar que seu discurso não está distante daquele empregado em
defesa da arte conceitual. Da mesma forma, sua ironia sobre o mau gosto
da classe média retratada por Claude reflete sem dúvida uma tensão ainda
latente entre a cultura elevada e a de massas.
Um diálogo em torno do valor da originalidade, em tempos de
reprodutibilidade da obra de arte, se destaca: questionando a
verossimilhança da narrativa construída pelo aluno, ela estranha que a
família retratada possua uma aquarela de Paul Klee. "Não faz sentido
'arte pura' numa casa de classe média", ela diz. Ao que Germain
responde, provocando-lhe espanto: "Desconfio que é uma cópia".
A China, presente em vários detalhes da rotina da família de classe
média, faz o contraponto à arte pura. A classe média se interessa por
arte ou por mão de obra barata?, indaga o professor, quando vê os pais
de Raphael na inauguração de uma exposição. De fato, Esther confunde
decoração com arte, mas isso não impede que o narrador-aluno se encante
por ela e transforme seu desprezo inicial em literatura.
Dentro da casa é um filme francês e com referências francesas,
mas bem podia inspirar uma versão brasileira. Afinal, o que não falta
por aqui é tensão entre alta e baixa cultura, ainda mais em tempos de
ascensão de uma nova classe média. Mas que isso seja feito por meio de
uma trama inteligente e ágil, como a de Ozon, e não por uma reflexão
erudita ou por uma comédia global.
[Fonte: www.digestivocultural.com]
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