RESUMO Publicado em 34 idiomas e tido como grande voz de sua geração, o israelense Etgar Keret, 46, terá em junho, pela primeira vez, um livro editado no Brasil. Atração confirmada da Flip 2014, o contista encontrou a "Ilustríssima" num café em Tel Aviv, onde falou sobre sua prosa, em que se mesclam absurdo e coloquialidade.
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Atrasado para a entrevista, Etgar Keret chega esbaforido ao café Michal, seu favorito em Tel Aviv. Ao desculpar-se, explica que foi acordado sete minutos antes pela mulher. Um rastro branco em seu rosto pode, ou não, ser a pasta de dente que secou no caminho. O cabelo um tanto emaranhado seria certamente resultado da pressa, não fossem os fartos registros fotográficos na internet a mostrar seu despenteado habitual.
Um dos escritores israelenses mais aclamados de sua geração, Keret é o primeiro autor confirmado para a Festa Literária Internacional de Paraty deste ano, programada para o final de julho. Pouco antes da Flip, ele terá publicado no Brasil a primeira tradução de uma obra sua, "De Repente, uma Batida na Porta" -título provisório em português do seu livro mais recente, que a editora Rocco promete para junho.
Quando se encontrou com a Folha, no final de 2013, ele acabava de voltar de outro festival literário de primeira linha, o que acompanha a Feira de Guadalajara, no México, da qual haviam retornado também relatos da ótima impressão deixada entre o público ("Meu editor me disse que eu parecia o Justin Bieber").
Mas Keret esquece a pergunta sobre o festival mexicano e, ignorando também o café da manhã à sua frente, se põe a narrar algo que, fosse um de seus celebrados contos, poderia constar de uma antologia como "o estranho causo dos percevejos nova-iorquinos".
A história começa com o passeio da família Keret por Nova York, logo depois de Guadalajara. Rapidamente, torna-se o drama de lavar todas as roupas, após terem acordado com marcas de picadas, culminando na decisão inesperada de deixar as malas nos EUA e voltar a Israel sem seus pertences. Por fim, desemboca na conclusão de que "as coisas materiais tomam muito de nossa atenção, mas na realidade não precisamos delas".
"Tenho menos de 20 livros na minha casa. Se são bons, eu os dou para alguém. Se são ruins, encontro um jeito educado de me desfazer deles. Acontece de eu comprar a mesma obra várias vezes, quando quero reler algo."
Keret deixa claro, rapidamente, que é um contador de histórias. Ele nem sempre responde às perguntas com a precisão sonhada pelos jornalistas, mas deixa transparecer, em seus devaneios, elementos organizadores de sua obra.
A fábula dos percevejos, por exemplo, é curta, como as dezenas de narrativas breves que transformaram Keret no melhor exemplo de concisão da literatura israelense. Algumas de suas histórias duram poucos parágrafos, em linguagem seca e direta, como sua fala.
No causo, há, ainda, aquilo que o professor Nissim Calderon chama de "a máscara e a face". "'Máscaras' são os enredos simples", diz à Folha o acadêmico da Universidade Ben-Gurion do Neguev. "Mas, por trás dessa simplicidade, há comportamentos complexos."
Os acontecimentos são, embora estranhos, de natureza trivial. Férias familiares em Nova York, uma infestação de percevejos e a decisão de não trazer as roupas de volta a Israel. Para essa "máscara", a face é a ideia que se segue: os bens materiais são desnecessários.
Outro exemplo? Keret emenda no relato de viagem uma segunda narrativa, a da história de como sua mãe escapou do Holocausto na Polônia. "Quando eu era pequeno, ela me contava sobre um senhor que tentou fugir com ela carregando um relógio de parede nas costas. Ele caiu no chão e não pôde mais se mover", diz o escritor, antes de concluir que "tudo o que você não consegue carregar na cabeça o atrasa".
De volta aos persistentes percevejos, a história também exemplificaria os aspectos cômicos de seu texto, a partir de situações absurdas e das más decisões tomadas por seus personagens.
O "epílogo" desse relato inclui a informação de que, em consulta com um médico, de volta a Israel, a família descobriu que as feridas causadas pelos percevejos podem aparecer com atraso e, provavelmente, não tinham relação com as roupas deixadas para trás, em um hotel americano.
Portando um sanduíche de omelete que mal começou a mordiscar, em meio às histórias quase ininterruptas, Keret se torna seu próprio leitor, por um segundo, quando ri de sua fábula, das malas abandonadas e da condição inocente dos insetos hemípteros da Costa Leste. No sorriso tímido e constante, expõe os dentes da frente, ligeiramente separados.
ÁGUA-VIVA
Etgar Keret já foi traduzido para 34 línguas e editado em 37 países. Além de ter publicado uma dezena de livros, ele é cineasta. Seu filme "Meduzot" (água-viva) -cujos créditos de roteiro e direção partilha com a mulher, a atriz e também escritora Shira Geffen-, foi premiado em 2007 com o Caméra d'Or, distinção do Festival de Cannes para estreantes em longa-metragem.
Mais de 40 curtas foram feitos como adaptações de suas histórias. E ele já se aventurou nos livros infantis e nos quadrinhos, como no elogiado álbum "Pizzeria Kamikaze" (2005), parceria com o ilustrador Asaf Hanuka.
Apesar de ser um dos escritores preferidos dos jovens israelenses, constando dos currículos escolares e tendo a fama de ser o autor cujos livros são mais furtados em bibliotecas públicas, Etgar Keret deve chegar ao Brasil como um tímido desconhecido entre os já vastamente traduzidos ao português Amós Oz e David Grossman.
A distância entre ele e seus conterrâneos não é só geracional. "A tradição da literatura hebraica é escrever de maneira que o leitor tenha de entender, em primeiro lugar, a gramática, para depois chegar à história", diz o professor Calderon. "Em Keret, a aparência externa é simples, e então entramos nos detalhes da narrativa."
O próprio escritor tem uma definição parecida. "Temos o costume, em Israel, de escrever em estilo elevado. Os autores têm um 'páthos' bíblico, e o livro ideal por aqui é o épico", diz Keret, entre goles de água San Pellegrino. "Não fui influenciado por esse modelo israelense, em que o escritor é um guia espiritual que tem de oferecer soluções. Sigo a tradição da diáspora judaica, de autores como Kafka e Isaac Bashevis Singer. Sou o cara que conversa com você no trem e lhe apresenta um problema, em vez de dar a resposta."
Na visão de Calderon, "ao contrário de Keret, Grossman e Oz nunca jogaram com a cultura popular em seus textos. Eles nunca fingiram ser simples, como ele. A literatura em hebraico sempre foi marcada pelo aspecto geracional, em que cada grupo vivia experiências distintas".
Para o professor Gadi Taub, da Universidade Hebraica, Keret é o mais importante representante de sua geração, "a que cresceu durante a desilusão em relação ao Estado de Israel". "O país havia sido criado, em 1948, com uma expectativa messiânica mesmo para os judeus seculares. Mas, depois da Guerra do Yom Kippur, da Guerra do Líbano e da Segunda Intifada, a ideia de que Israel seria o farol das nações se perdeu", diz Taub.
"A maior decepção da minha vida foi o que fizemos no Líbano", afirma Keret, em menção à ocupação israelense do sul do país e ao massacre de Sabra e Shatila, em 1982, pelo qual o ex-premiê Ariel Sharon, morto neste mês, é considerado pessoalmente responsável. "Foi a primeira vez que pensei que a história que eu havia estudado na escola não estava correta."
O desencanto é parte fundamental da obra de Keret, porque dá conta da falta de sentido dos fatos e daquilo que Taub chama de retorno ao significado ordinário da vida cotidiana, "tanto no formato quanto nos temas de suas histórias". "Keret controla a linha narrativa com a mão firme. Ele combina uma máquina eficiente de contar histórias com reflexões sobre a própria arte da escrita."
Que os contos tenham aspecto aparentemente comezinho não significa, como alerta Calderon, que sejam superficiais. Por exemplo, aquele que dá título a uma de suas mais bem-sucedidas coletâneas, que se traduziria por algo como "saudades de Kissinger" (1994), pode ser lido como a estranha história de uma garota que pede ao namorado que lhe traga o coração de sua mãe -mas há quem estude o conto como uma paródia das baladas medievais, na qual o viés da narrativa, em vez de atrair a empatia do leitor pelo sentimento que o personagem expressa, conquista sua hostilidade.
RUSHDIE
"É um autor brilhante, totalmente diferente de qualquer outro que eu conheça", afirmou sobre ele o britânico Salman Rushdie, de "Os Versos Satânicos".
"Quando alguém da minha geração ouve a expressão 'histórias curtas' pensa imediatamente em Etgar Keret", diz à "Ilustríssima" Roy Yeshurun, 38. "O lançamento do primeiro livro dele foi um acontecimento para mim", complementa o escritor, que publicou neste mês em Israel sua obra de estreia, uma coletânea de contos.
A concisão de Keret é tão proverbial que transcendeu a literatura e virou arquitetura. Inspirado pela obra do autor, o artista plástico e arquiteto polonês Jakub Szczesny construiu em 2012, em Varsóvia, um prédio chamado Casa Keret.
Etgar Keret no mezanino da Casa Keret, que leva seu nome, na Polônia |
"Foi erguida na proporção das minhas histórias", define o homenageado. "É uma casa pequena, mas funcional." O prédio, um misto de instalação, museu e espaço para residências tem 72 cm em seu ponto mais estreito e exuberantes 133 cm em sua porção mais larga -e área total de cerca de 14 metros quadrados. O site da instituição (kerethouse.com) reproduz fotos do escritor refestelado numa cama de solteiro, forrada com um lençol branco com bolinhas coloridas.
Habitar, ainda que por um breve período, uma casa em que pode literalmente subir pelas paredes em vez de usar escadas só faz colocar o criador mais próximo do ambiente de suas criaturas. Boa parte da produção keretiana é marcada pelo absurdo -como no conto em que o narrador se apaixona por Vênus, mas, ao contrário do que ocorria com os jovens enlouquecidos de amor pela deusa nas histórias da Antiguidade clássica, enfastia-se e decide deixá-la. "Ela é bonita, realmente bonita. Perfeita. E bem legal, também. Mas é isso. Amanhã vou comprar um cachorro", conclui.
O objetivo cômico alcançado por suas histórias se deve, também, à linguagem coloquial, em dissonância com a tradição de escrita formal em hebraico -visível inclusive nos jornais israelenses. "Em inglês, você escreve como Shakespeare. Em hebraico, o modelo é a Bíblia", expressa o autor.
FRANKENSTEIN
O hebraico é uma realidade linguística esdrúxula a ponto de parecer saída das páginas de Keret: após quase dois milênios de desuso, durante os quais era considerado um instrumento litúrgico, foi trazido de volta à vida, no final do século 19, pelo jornalista Eliezer Ben Yehuda. Mas a língua ressuscitada por esse Dr. Frankenstein não espelhava as inovações dos 2.000 anos em que estivera inerte. A academia hebraica e Ben Yehuda tiveram de sacudir a criatura com choques de etimologia.
"No fim", descreve Keret, "deixaram-nos com uma língua conservadora, mas caótica e cosmopolita". "O hebraico representa Israel, que é jovem e antigo, tradicional e liberal", diz o escritor. "O país é meio Irã, meio Califórnia, já que segregamos mulheres no transporte público, mas um transexual nos representou no festival de canções Eurovision. Isso aparece na linguagem coloquial, na nossa escolha de vocabulário."
O estilo de Keret, nesse sentido, é inconfundível. "Qualquer leitor reconhece a linguagem dele", afirma o professor Gadi Taub. "É uma variante falada, sem metáforas complexas."
Esse mesmo tom, por paradoxal que pareça, faz de sua obra um desafio à tradução.
O livro que vai sair no Brasil está sendo trazido ao português pelas mãos de Nancy Rozenchan, professora do Departamento de Letras Orientais da USP. Ela teve contato com a obra de Keret há 15 anos e chama a atenção para a presença da gíria no texto do autor.
"Keret é o único escritor israelense importante que abusa desse recurso", diz a professora, que tem passado muitas horas em companhia de um dicionário de gírias hebraicas. "Ele também é o único dos grandes autores que escreve com muita regularidade sobre temas como o sexo, mas com um vocabulário sem baixarias."
Para a alegria da especialista, Keret costuma ser bastante amigável com os tradutores. "A tradução é um diálogo, e meu texto não é a Bíblia, é só uma maneira de me expressar", diz o escritor. "Às vezes reescrevo trechos ou, se não fizer sentido em outras línguas, posso excluir parágrafos inteiros."
Miguel Conde, editor da Rocco, ressalta uma característica de outra ordem na obra de Keret. "Ele tem um olhar novo sobre as implicações humanas do conflito árabe-israelense", opina. "A geração anterior tem um projeto em que a literatura pode ter um papel humanizador em um confronto brutal. Keret toma um caminho diferente, com um olhar mais pessimista, em que os impasses levam a situações de nonsense."
De fato, apesar de não ser mencionado à exaustão, o conflito regional pesa nos textos de Keret, que começou a escrever durante o serviço militar obrigatório, após o suicídio de seu melhor amigo.
Nascido em 1967 -ano da Guerra dos Seis Dias, quando Israel conquistou as colinas de Golã, o deserto do Sinai e a Cisjordânia-, ele não se surpreende com a atenção dada à violência em sua obra.
"A ferocidade de minhas histórias vem do fato de que vivo nessa sociedade violenta. Não acho que alguém no Brasil possa compreender completamente", diz, fazendo pensar que talvez afinal seja essa, e não a das peculiaridades linguísticas, a fronteira mais difícil de traduzir em sua obra. "Vivemos em uma fatia fina da história, entre o Holocausto e o medo de outro genocídio no futuro."
Ele argumenta que a leitura de seus contos é muito diferente para aqueles que estão acostumados a ver seus jovens passarem três anos no Exército, "onde vão ter de matar ou ser mortos".
A violência já chegou inúmeras vezes à soleira do escritor. Ele conta que seu filho, Lev, nasceu no mesmo dia de um ataque terrorista, razão pela qual ele teve de buscar um médico disponível no hospital para atender a mulher, em trabalho de parto. "Enquanto procurava, jornalistas me viram nos corredores e pensaram que eu estava na explosão. Eles vieram me perguntar sobre o ataque."
Mal termina de contar a história, Keret já avança no tempo e narra um episódio de quando ele e seu filho, já então com sete anos de idade, foram surpreendidos por uma sirene, que alertava a cidade para a queda de um míssil. "Eu tive de convencê-lo a se deitar no chão. Ele me perguntou por que deveria fazer isso se a calçada é suja e nem podemos comer alguma coisa quando cai nela."
Também será um desafio aos leitores brasileiros a imersão em uma sociedade que, mais do que violenta, discute diariamente qual é a sua identidade.
"O que é ser judeu, o que é ser israelense, o que é ser sionista? Há diferentes respostas. Meu irmão é um esquerdista anti-Israel que mora na Tailândia. Minha irmã tem 11 filhos e mora no bairro ultraortodoxo Mea Shearim, em Jerusalém. Estou entre os dois, com quem tenho boas relações. Isso me põe em uma situação filosófica, criando minha própria identidade."
FRACASSO
"Escrever, para mim, tem a ver com fracasso", resume Keret durante a entrevista, enquanto enfim termina de mastigar seu sanduíche. O fracasso, no caso, se refere às situações narradas em seus livros, e não a sua carreira, que em Israel é sinônimo de sucesso.
Eis que o fracasso se apresenta a este jornalista. Como não o temer ao final de um texto sobre um autor celebrado, entre tantos outros motivos, pela maneira surpreendente de concluir suas histórias?
"Escrevi 2.500 palavras sobre como suas histórias são o resultado de um bom mecanismo narrativo, com finais inesperados", expressa o repórter em e-mail a Keret, um dia antes de entregar este texto ao jornal. "Agora meus leitores vão pensar: eis aí algo que o repórter não conseguiu."
Keret responde o e-mail apenas com um sinal já clássico na linguagem da internet: :)
DIOGO BERCITO, 25, é correspondente da Folha em Jerusalém.
VERIDIANA SCARPELLI, 35, ilustradora, é autora de "O Sonho de Vitório".
[Foto: Bartek Warzecha- ilustração: Veridiana Scarpelli - fonte: www.folha.com.br]
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