Por DIOGO BERCITO
RESUMO Na última década, o interesse global por assuntos ligados ao Oriente Médio e ao islã contribuiu para aumentar o número de estudantes do árabe. Correspondente da Folha em Jerusalém aborda complexidades do aprendizado da língua, como a diglossia, a convivência de sua variante formal e dialetos locais.
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Com a queda das Torres Gêmeas, em 2001 e, dez anos depois, a derrocada
de ditadores como o egípcio Hosni Mubarak e o líbio Muammar al-Qaddafi, o
idioma árabe tornou-se um "habib" -querido- dos estudantes de idiomas.
Já falado por milhões ao redor do mundo, o árabe teve aumento de 46,3%
de procura no bancos acadêmicos americanos entre 2006 e 2009, segundo a
Modern Language Association. Foi o idioma estrangeiro com maior procura
no país, com incremento de 126,5% em relação à edição anterior do mesmo
estudo, no qual o árabe havia passado a figurar entre os dez idiomas
estrangeiros mais estudados nos Estados Unidos.
O fenômeno é recente, mas não está desligado do fato de que o árabe foi,
no passado, uma das línguas da ciência no mundo. É o idioma da
conquista islâmica, do califado de Córdoba, do Alcorão e dos clássicos
medievais de Avicena. É a fala do cinema egípcio, dos discursos do
ditador sírio Bashar al-Assad e de populações associadas, via
preconceito, ao terrorismo.
Estudar árabe, porém, é um compromisso de longo prazo -digo por
experiência própria. Mais de dois anos depois de decidir estudar o
idioma e após ter estado em um punhado de países árabes como
correspondente desta Folha no Oriente Médio, ainda passo minhas
tardes tentando me lembrar das declinações e da vocalização correta.
Isso quando não estou frustrado, em um mercado de Jerusalém, tentando
entender quanto custa uma latinha de Coca-Cola.
LENDA
Uma lenda do século 7º fala de como Ziyad ibn Abihi, governador de
Basra, no atual Iraque, convenceu o sábio Abu al-Aswad a normatizar o
árabe. Abertos os portões da expansão islâmica, as fronteiras da
península Arábica devoravam África e Ásia. Os novos falantes emprestavam
erros à língua.
Como o sábio resistia à tarefa, o governador teve uma ideia: pediu que
um homem sentado à beira de uma estrada recitasse o Alcorão, trocando,
porém, as terminações dos casos gramaticais. Em árabe, isso faz com que
uma frase como "Deus e o profeta salvam dos incrédulos" tenha seu
sentido subvertido para "Deus salva dos incrédulos e de seu profeta".
Assim Aswad se convenceu da necessidade de compilar um conjunto de
regras para chegar a um árabe padrão. Essa lenda passou a servir como um
dos mitos fundadores da tradição gramatical do árabe, reunindo diversas
das características que marcaram, desde então, o estudo dessa língua.
Está presente na historieta, por exemplo, a ideia ainda corrente de que a
língua é uma característica biológica dos povos árabes e que os
desvios, portanto, nascem nos povos arabizados. Ou a ideia de que a
língua é um fato estanque, desvinculado da história, preso a um texto
sagrado do qual é, aliás e antes de tudo, uma manifestação.
Além disso, a lenda do governador e do sábio dá conta da obsessão pela
manutenção dos casos gramaticais na língua -cujo bom uso, aparentemente,
é ameaçado desde os anos desérticos do surgimento do islã, no centro da
península Arábica, até a manhã em que assisti à minha primeira aula de
árabe, na Universidade de São Paulo.
Minha história com o estudo do árabe decepcionaria aqueles que gostam de
narrativas orientadas pelo "maktub", o conceito de que algo "estava
escrito" -popularizado (mesmo no mundo árabe) por Paulo Coelho.
Quando escolhi essa língua, não estava pensando na "qisma", a ideia de
que o árabe é a parte do latifúndio linguístico que coube aos árabes
como dádiva divina. Nem me motivava um bisavô paterno talvez damasceno,
de quem não há nenhum registro ou memória.
Eu escolhi me habilitar em árabe, durante o curso de letras, porque o
hebraico só era ensinado à noite, enquanto eu trabalhava na Redação. Os
anos se seguiram e, antes de me mudar para Jerusalém, eu só havia
passado de raspão por essa língua irmã do árabe.
Durante uma corrida de táxi em Rabat, a capital do Marrocos, onde por
três meses fui bolsista do projeto Ibn Batuta de ensino da língua, o
motorista desandou a falar em árabe ao me ouvir conversar sobre xiismo
com um colega holandês.
Ainda iniciante, perdi quase todas as palavras. Mas aproveitei para
perguntar como se dizia "direita", em árabe. Podia ser útil para dar
indicações no próximo trajeto. "Al-yamin", ele respondeu. E aí, bem de longe, o hebraico fez sua aparição: "Mas não
confunda com Binyamin", brincou o motorista, fazendo troça com Binyamin
Netanyahu, atual premiê de Israel.
Eu ri e disse que usaria a tirada para memorizar a palavra. "Como vai
fazer com a esquerda?", ele me perguntou. "Fácil. Al-shimon", brinquei. A
resposta correta é "Al-yasar", mas eu estava então falando de Shimon
Peres, o presidente israelense. O táxi balançou de tanto que nós três
rimos da piada, ainda que não tivesse havido graça.
Talvez pelo contato com todo tipo de passageiro, os taxistas dominam a
variante padrão do árabe -o termo se entende pelo fato de que não
existe, na prática, a "língua árabe". O que há é um conjunto de línguas,
nem sempre compreensíveis entre si, que não formam um idioma, do ponto
de vista linguístico. São dialetos. Mais por política e religião, as
variantes se cobrem sob um mesmo véu, no que se chama uma sociolíngua.
Para os muçulmanos, Deus decidiu que o Alcorão fosse revelado a Maomé em
árabe -não em hebraico, grego ou persa, porque era aquela a revelação
feita especificamente a eles (em árabe, diz-se que o livro "nazala",
"desceu"). Assim, para autoridades religiosas, a língua está em seu
estágio único. Não há antes, não há depois.
É como diz o poeta sírio Adonis, o nome mais cotado, entre os que se
expressam em língua árabe, para o Nobel de literatura. "O Islã se
revelou como inspiração divina em língua árabe. A partir daí, a língua,
como portadora das verdades divinas, deixou de ser uma parte da
realidade relativa e mutável. Tornou-se absoluta: imagem absoluta do
absoluto Deus."
Se existe uma unidade na religião ("não há nenhum deus que não seja
Deus", diz a profissão de fé do árabe, uma das bases teológicas do
islamismo), a ideia de que haveria também uma homogeneidade na língua
árabe se debate diariamente contra a realidade.
Dessa maneira, uma ação cotidiana, como tomar o café da manhã antes da
aula, pode se transformar num desafio linguístico. Em que língua pedir
dois croissants? Em árabe -ou em árabe?
Havia duas opções. Eu poderia dizer o número como "ithnan", em árabe
formal, e soar como saído do século 7º, de um manuscrito ou da lenda de
Abu al-Aswad. Mas, se preferisse usar a palavra "juj", típica do
coloquial marroquino, os vendedores poderiam ver nisso a pretensão de me
passar por local. Como se um estrangeiro em São Paulo usasse uma
expressão como "de boa" para dizer "tudo bem".
ESQUIZOFRENIA
A linguística tem nome específico para essa convivência entre formal e
coloquial. Chama-se "diglossia", "duas glossas", situação geralmente
exemplificada pelo latim, que manteve por séculos uma variante culta e
diversas versões vernaculares. "É claro que isso é uma espécie de
esquizofrenia", explica o escritor libanês Amin Maalouf.
Maalouf escreve em francês -entre os vários reconhecimentos a sua obra
está o Goncourt, prêmio máximo da literatura na França, que ele recebeu
em 1993 por "O Rochedo de Tânios". Ele defende, intelectualmente, a
manutenção da variante culta do árabe, diante de propostas de
simplificar a língua a partir de um consenso entre as dezenas de
dialetos. "É preciso viver com a dicotomia."
"O latim desapareceu como uma língua falada. Mas, com o árabe, as coisas
aconteceram de maneira diferente. O árabe produziu dialetos locais, mas
a variante culta não desapareceu. Ela permanece verbalizada, escrita e
compreendida pelos falantes educados", diz Maalouf. "Ter uma língua em
comum é um recurso cultural importante."
O árabe seguiu um caminho distinto daquele trilhado pelo latim -que,
diante da queda do Império Romano, perdeu seu centro, possibilitando que
surgissem, nas periferias, as línguas românicas, transformadas pelos
séculos em idiomas como o português, o castelhano, o sardo e o romeno.
Professor na Universidade de Zaragoza, o acadêmico Federico Corriente,
autoridade no estudo do árabe falado na península Ibérica durante o
califado de Córdoba (séculos 10 e 11), insiste que um processo
semelhante ao do latim seria um "empobrecimento" tanto cultural quanto
político para a comunidade de países falantes.
"O latim, infelizmente, foi destruído pelos nacionalismos da idade
moderna e contemporânea, prejudicando todos os europeus, já que não
temos mais uma língua culta comum a todos", diz. Unificar o árabe,
afirma Corriente, seria repetir o "disparate que a Europa cometeu ao
abdicar do latim: fragmentação e preguiça mental".
LÍNGUA FRANCA
Ao contrário do que houve no Ocidente, continua havendo uma língua
franca para a comunicação entre os Estados de população árabe. Também
são ligados pelo árabe como língua litúrgica os milhões de muçulmanos ao
redor do mundo. O Alcorão não pode ser traduzido, e o estudo do árabe
formal torna-se, assim, um imperativo religioso.
"O Alcorão teve uma grande influência na língua árabe", opina o jovem
saudita Muhammad Hassan Alwan, autor de "The Beaver", uma das obras que
concorreram ao Arabic Booker Prize, competição pan-árabica lançada em
2007. "Esse livro sagrado manteve a língua por 14 séculos de maneira que
pode ser facilmente entendida hoje."
Apesar dos mitos sobre sua inacessibilidade, o árabe padrão ainda é
compreendido nas ruas. Foi com essa variante que um grupo de crianças me
cercou, em Rabat, para perguntar se eu era muçulmano. Quando disse que
não, uma gritou, as mãos na cabecinha indignada: "La! La tarif al-nar?"
("Não! Você não conhece o fogo?")
Um estudioso do idioma que não segue o islã e não é nem sequer de origem
árabe se vê, por vezes, obrigado a justificar seus estudos. É possível
argumentar que o interesse vem do prazer histórico. Mantida estática
pelas exigências da religião, a língua ainda é próxima do dialeto urbano
falado em Meca no século 7º. Falar árabe é como conversar com beduínos
-o falante ideal, segundo a tradição.
O árabe é parente não só do hebraico mas também das demais línguas
semíticas, como o acadiano, o aramaico e o fenício. Quem diz "salam", em
árabe, de certa forma está dizendo "shalam" (acadiano), "shlam"
(aramaico) e "shalom" (hebraico).
O termo "semita" vem de Sem -na Bíblia, um dos filhos de Noé. Emprestado
da linguística, foi compreendido politicamente como designação étnica.
Em sua origem, era a reunião de um grupo específico das línguas
afro-asiáticas, como o hebraico e o árabe, parentes distantes do egípcio
antigo.
Para falantes de línguas latinas ou germânicas, ambas indo-europeias,
aprender um idioma semítico envolve adaptar-se a um modo de pensar. O
árabe não tem verbos "ser", "estar" e "ter". A existência é presumida
(de "eu Diogo" se entende "eu sou Diogo"). O estado, também ("eu
doente"). Para a posse, se diz "para mim, um carro".
"Línguas orientais exigem muita dedicação", diz Mamede Mustafa Jarouche.
Tradutor do "Livro das Mil e Uma Noites", Jarouche ensina gramática
árabe na USP. "Com línguas como o inglês, é possível haver aprendizado
passivo. Um aluno pode aprender sem nunca ter ido aos Estados Unidos.
Isso não ocorre com o árabe."
A forma da escrita, com alfabeto próprio, correndo da direita para a
esquerda na página, é outro aspecto a levantar curiosidade em torno de
um estudante de árabe. Quando foi estabilizada, em cerca de 1.000 a.C., a
escrita fenícia -origem dos sistemas do árabe, do aramaico e do
hebraico- seguia esse sentido. Os gregos, ao se apropriarem da invenção
semítica num momento posterior, mudaram-lhe o rumo.
LEITURA
Pouco se fala, porém, da real dificuldade da leitura em árabe. Para os
acadêmicos mais rigorosos com a classificação, a escrita do árabe não é
de fato "alfabética", apesar de "alfa" e "beta" serem ironicamente
palavras emprestadas do fenício pelos gregos. O árabe é escrito por meio
de um "abjad" -uma escrita consonantal.
O árabe (como o hebraico, o siríaco e o nabateu) não registra todos os
sons que são falados. Boa parte de suas vogais é subentendida. Assim,
escreve-se "ktb" para dizer "kataba", ou "ele escreveu". O que pode
levar a problemas, uma vez que "ktb" também pode ser lido "kutub",
"livros". Ou "kutiba", "foi escrito".
(A hstór de Abu al-Aswd nos lembr de que os árbs stveram, desd o níci do
slmism, prcpads com a mntnção do text crânc. Tref inglóri par um livr
sgrad scrit sem dverss de sus vgais.1)
Daí entram os diacríticos, marcações feitas sobre ou sob as letras para
indicar vogais ocultas. Os sistemas de diacríticos são, de certa
maneira, uma invenção siríaca motivada pelas traduções da Bíblia e pela
necessidade de grafar com exatidão os nomes gregos registrados durante a
Antiguidade.
A atual vedete do ensino do árabe é um método didático chamado
"Al-Kitaab fi Ta'alum al-Arabiya", organizado por professores
americanos. É usado em Chicago e em Harvard, e também na USP e na escola
Qalam wa Lawh, onde estudei no Marrocos.
É, porém, um livro controverso. Em 2008, um editorial do "Washington
Post" expressava preocupação quanto ao método. O quarto capítulo do
manual mostra a personagem Maha, antipática filha de uma professora
palestina, dizendo a frase que se tornou clássica entre estudantes (no
meu caso, rendeu a ideia para um rap, escrito para um trabalho da USP):
"Ana la uhibu madinat Niw Yurk", "Não gosto da cidade de NY". Os
motivos? Trânsito e calor. De onde vinha Maha? Do Cairo, a quente e
caótica capital do Egito.
Apesar do estranhamento que o livro possa ter causado, é exagerada a
alegação de que o método do "Kitaab" forme terroristas. Mas é pertinente
a observação de acadêmicos, como o espanhol Corriente, que se opõem às
tentativas de ensinar o árabe padrão por diálogos.
O árabe formal não é uma língua falada. As situações de comunicação são
em geral pouco naturais, como discursos na ONU -o idioma é uma das seis
línguas oficiais das Nações Unidas, ao lado do inglês, do chinês, do
francês, do russo e do espanhol. Experimente pedir uma cerveja em árabe
formal a um garçom no Marrocos: ele vai olhar para você como se
estivesse diante de um personagem de um filme.
O estudante de árabe nunca está em paz, entre a "fusha" ("a eloquente",
como se chama a variante formal) e a "amia" ("a popular", os dialetos).
Se estuda o padrão, lhe perguntam por que não quis o dialeto -afinal, é a
língua das ruas. Caso estude o vernacular, lhe perguntam por que não
escolheu o formal -ora, é a língua dos livros!
O ideal, opina o espanhol Corriente, é "um conhecimento equilibrado da
realidade linguística árabe, abarcando tanto a habilidade de ao menos
ler a língua clássica quanto falar um dialeto". Mas isso esbarra, diz,
na realidade de que o ensino do árabe "é catastroficamente terrível, por
falta de métodos, de definição de objetivos e de preparação
pedagógica".
A predominância da "fusha" como única variante escrita, porém, parece
estar caindo. Os livros dizem ser impossível registrar os dialetos,
porque têm sons sem equivalente na escrita. Mas, na estação de ônibus de
Rabat, um outdoor anuncia: "kein" desconto -"kein" é o equivalente
dialetal marroquino para o formal "hunaka", "há".
A Wikipedia também aposta em um futuro menos rígido para as línguas
árabes. Alguns verbetes, como o referente a Cleópatra, têm versões em
"egípcio". "Egípcio", como vem sendo chamado na enciclopédia
colaborativa o dialeto cairota, era o termo que designava, até há pouco,
a língua escrita com hieróglifos, no tempo dos faraós.
CENÁRIO
O terreno para um novo cenário cultural, ainda que o total declínio do
árabe formal como língua franca seja pouco provável, é a literatura. É
nela, e sobretudo em diálogos, que as variantes vernaculares ganham
corpo. "O árabe dialetal está carregado de história, de cultura
religiosa e de cultura profana, de memória", diz o escritor libanês
Rachid Daif.
O autor -que terá um de seus livros, "Que se Estrepe Meryl Streep",
traduzido ao português por Felipe Benjamin Francisco, monitor de cursos
de gramática na USP, como dissertação de mestrado- afirma que "os
dialetos estão vivos e são capazes de traduzir o ritmo da vida
contemporânea".
A americana Meredith Meyer, minha colega no Marrocos, era um exemplo de estudante capaz de usar o dialeto naturalmente.
Além de sua notável pronúncia do "ayn", uma consoante tão gutural que
parece vir do âmago do ser humano, ela soltava qual um nativo o corrente
"ghadi an darrrbak": "Vou sentar a mão na sua cara", em tradução livre.
Como as ruas que ligavam os antigos califados islâmicos no passado, o
caminho que leva o estudante de árabe até o domínio do idioma é longo.
Às vezes, mesmo para os mais hábeis nos dialetos ou para os afiados na
variante padrão, parece sem fim. Costumamos nos perguntar, ansiosos:
"Seremos, um dia, fluentes?". A resposta possível, por ora, está numa
palavra que aprendi com o tempo: "Mumkin". Talvez.
Nota
1. Ou, com todas as letras: "A história de Abu al-Aswad nos lembra
de que os árabes estiveram, desde o início do islamismo, preocupados com
a manutenção do texto corânico. Tarefa inglória para um livro sagrado
escrito sem diversas de suas vogais".
[Ilustração: Jan Limpens/Arte Folha - fonte: www.folha.com.br]
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