domingo, 24 de agosto de 2014

Caminhando entre fronteiras

Português, russo e espanhol borbulham no caldeirão de uma cubana que ensina o idioma do Brasil a estrangeiros


Maria Luisa Ortiz é uma cubana que estudou linguística em Moscou e dá aulas, no Brasil, de português brasileiro para estrangeiros. A definição sucinta não abrange todas as atividades da professora, mas evidencia sua principal característica: a longa e plural formação, obtida por meio de trajetória singularmente internacional.

No começo dos anos 1980, as relações entre Cuba e a União Soviética renderam-lhe a oportunidade de cursar um mestrado no Instituto Superior Pedagógico de Moscou. Depois de oito anos no mundo eslavo, volta ao país de origem. Surpreende-se com uma reorientação da política cubana, que a leva a lecionar português. Em 1992, formou-se em língua portuguesa e literatura luso-brasileira na Universidade de Havana. Dois anos depois, viu-se convidada a exercer o magistério no interior de Minas Gerais. Pouco tempo após a chegada a São João del Rei, foi aprovada na seleção de doutorado na Unicamp.

O Brasil revelou-se um destino. Nos anos 2000, ingressou na Universidade de Brasília, onde percorreu caminho que culminou na direção do Instituto de Letras. Atualmente, é professora no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UnB, onde também, em homenagem às origens de sua maturação intelectual, dá aulas de russo em cursos de extensão.

Em colaboração com a Rede Brasil Cultural, a professora já ministrou diversos cursos de capacitação para professores de Centros Culturais Brasileiros. Não apenas transmite aos docentes da Rede avanços metodológicos no ensino do Português como Língua Estrangeira. Acostumada ao vaivém entre fronteiras, Maria Luisa Ortiz revela segredos do ensino em ambientes multiculturais.

Não raro, dá lições de vida.

Quais os avanços e os obstáculos no ensino de Português como Língua Estrangeira (PLE) no exterior?

Em face do grande interesse pelo português, manifestado por diversos cidadãos estrangeiros, desde o empresário ao trabalhador em busca de boas oportunidades profissionais, há iniciativas exitosas. O estabelecimento da Rede Brasil Cultural é uma delas. Permanece, contudo, um desafio: ampla capacitação de professores brasileiros que possam promover o idioma, em países estrangeiros, com base em conhecimento técnico. A relevância do português no cenário internacional requer preparação e capacitação programática de docentes. Há, contudo, bem poucos cursos de PLE no Brasil. A licenciatura em ensino de português como segunda língua da Universidade de Brasília e a especialização em PLE na Universidade Federal do Pará são projetos pontuais. Poderia haver, por parte das universidades brasileiras, maior investimento nessa modalidade de ensino, o que deveria inserir-se em um programa estratégico de divulgação do idioma.

Qual a importância do material didático em sala de aula?

O material didático é uma muleta do estudante, a ser usada, sobretudo, quando ele não está imerso no contexto linguístico. O livro é apenas uma das vias, já que o conceito de “material” é amplo. Ainda assim, é um instrumento útil, que poderia existir, em nosso mercado editorial, em maior abundância. Há muitos profissionais capazes de elaborar livros bons, com abordagem adequada e eficiente utilização de cores. São poucas as editoras, contudo. A despeito da escassez, permanece uma regra de ouro: todo material deve ser testado exaustivamente antes de ser aplicado.

Como não negligenciar os aspectos gramaticais do ensino de PLE, indubitavelmente importantes, sem incorrer em métodos repetitivos de memorização?

Minha abordagem não é gramaticista. A gramática está incorporada ao texto, mas não é o destaque do método.

Difunde-se, equivocadamente, a ideia de que o aprendizado de um idioma é o aprendizado de sua gramática.

É mais do que isso. Prefiro ter em mente o conceito de gramática pedagógica: transmito aos alunos as estruturas que estão em uso, na forma em que são aplicadas no cotidiano.

O professor, para não se prender ao anacronismo da memorização, deve sempre adaptar-se às necessidades dos alunos.

De que forma o contato com expressões idiomáticas facilita o aprendizado de línguas estrangeiras?

Deve-se distinguir língua formal e língua oral. Ambas devem ser estudadas. No caso da segunda, há contato direto com elementos culturais dos falantes nativos. A comunicação intercultural é parte do aprendizado da língua oral. Sabe-se, afinal, que a língua é expressão eminente da cultura de um povo, entendendo-se “cultura” em sua acepção antropológica (hábitos e costumes de determinada comunidade). As expressões idiomáticas são portas de entrada para a compreensão da cultura do estrangeiro.

Tem-se, por exemplo, o “apareça lá em casa” do português brasileiro. Eventualmente, um estrangeiro, ao ouvir um brasileiro despedir-se com essa frase, pode entender que de fato deve prestar-lhe uma visita em algum momento.

Em uma boa aula de PLE, o estrangeiro saberá que o “apareça lá em casa” é uma forma de fazer o interlocutor sentir-se mais à vontade.

A senhora poderia mencionar algumas diferenças no ensino de PLE para crianças e para adultos?

Um adulto tem mais informações sedimentadas, ao passo que uma criança tem um cérebro menos carregado.

Percebo, por exemplo, que os adultos, por já terem internalizado diversas regras sociais, sentem-se com frequência mais inibidos, ao passo que as crianças, menos marcadas por experiências traumáticas, abrem-se mais facilmente ao aprendizado de idiomas estrangeiros. Fatores como memória, nível de alfabetização na língua materna e motivação mudam significativamente de acordo com a faixa etária. Uma dica que dou a professores de PLE é o estudo das ideias de Jean Piaget [importante estudioso suíço da teoria do conhecimento, ou epistemologia], que, em seus trabalhos, definiu quatro estágios do desenvolvimento cognitivo no ser humano.

Como os familiares de crianças imigrantes ou de ascendência brasileira podem incentivar o aprendizado do português em ambiente doméstico?

É inegável a relação profunda entre língua e identidade.

Em casa, é importante que os pais promovam o uso da língua materna de maneira não impositiva. Recomendo especial cautela no caso de cônjuges oriundos de países diferentes, que devem entrar em acordo com para constituir um lar bilíngue. A criança deve ter oportunidade de aplicar os dois códigos livremente.

Pedro Gomides e Carlota Ramos
Diplomatas no Ministério das Relações Exteriores

[Fonte: www.editor.itamaraty.gov.br]


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