O escritor cubano e a moradora do Alvorada
LEONARDO PADURA
tradução FRANCESCA ANGIOLILLO
tradução FRANCESCA ANGIOLILLO
RESUMO O autor do romance "O Homem
que Amava os Cachorros" narra seu longo interesse pelo Brasil, os planos
frustrados de visitar o país e a concretização desse desejo, há duas semanas.
Entre eventos em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, Leonardo Padura recebeu
um inesperado convite da presidente Dilma Rousseff.
*
Para os cubanos, o Brasil sempre foi um
território mítico. O Carnaval, as praias e o Cristo Redentor do Rio; a
arquitetura futurista de Brasília; os familiares orixás da Bahia -irmãos dos
que habitam Cuba-; a bossa nova; o futebol bonito; a megacidade de São Paulo;
os sertões e os cangaceiros; a floresta amazônica e suas lendas; a riqueza
fulminante de Manaus, com sua Ópera copiada do teatro parisiense; o ímpeto de
Iguaçu: tudo isso, entre outros tópicos, alimenta a imagem colorida de um país
mágico e magnético.
Para mim, além disso tudo, o Brasil é um local
que percorri em muitos sentidos graças a minhas estáticas viagens literárias.
Com Machado de Assis me levando pela mão, conheci o Brasil do século 19; com
Jorge Amado, a Bahia (terra da magia, se há alguma); com Guimarães Rosa,
aprendi a dura existência dos sertões; com Rubem Fonseca, a vida violenta das
cidades modernas.
Mas, como a maioria dos cubanos, nunca havia estado
no Brasil, e o desejo de visitar o país era um sonho que crescia como uma
necessidade a sanar, pois se mantinha distante do meu alcance havia já muito
tempo. Durante mais de dez anos, diferentes convites para visitar o país tinham
se concluído na frustração do irrealizado e, enquanto viajava meio mundo, meu
sonho de conhecer o Brasil se conservava incólume, como se sobre minhas
pretensões pesasse uma maldição, também mágica, como qualquer maldição digna do
nome.
Na verdade, tinha muitas outras razões, além dos
mitos e dos transportes literários já mencionados, para querer visitar o
Brasil. Algumas se relacionavam às confluências históricas entre Cuba e o
gigante sul-americano. Mas a maioria era cultural -além da literatura, a música
e o cinema brasileiros fazem parte do meu acervo sentimental- e havia até
exigências e curiosidades de caráter social.
Estas últimas, como costuma acontecer, eram as
mais cheias de reveses, especialmente complicadas no caso brasileiro, pois se
moviam em polos tão opostos como as imagens cruas dos telejornais e filmes nos
quais se falava de favelas, violência, miséria, tráfico de drogas, meninos de
rua e operações policiais, enquanto no outro extremo flutuavam as fábulas das
telenovelas "made in Brazil", povoadas por mulheres e homens belos,
de preferência moradores de Copacabana e Ipanema, condenados a sofrer por 120
capítulos a fio e só ao fim do drama recuperar seu direito à felicidade.
SUPERSTIÇÕES
Como, apesar de eu ser ateu, meu caráter comporta
certa propensão às superstições, só disse a algumas pessoas que armava uma nova
tentativa de viajar ao Brasil.
Por isso foi quase em segredo que me inscrevi
para participar da 2ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura, em Brasília. Com
meus editores, na Boitempo, combinamos uma brevíssima passagem por São Paulo e
Rio de Janeiro, pressionados pela chegada de uns feriados que tornariam
impossível prolongar o trabalho a ser feito no país: conceder entrevistas e
apresentar meu romance "O Homem que Amava os Cachorros", que há
poucos meses teve sua edição brasileira convertida, para minha surpresa e
alegria, em um dos livros mais comentados e lidos deste 2014.
O feitiço da possível maldição por fim se rompeu
e, na madrugada de 12 de abril, desembarquei em Brasília. Da janela do meu quarto
no envelhecido Hotel Nacional, onde me hospedei com Lucía, minha mulher, tive a
primeira imagem do que me esperava nessa viagem e das condições que delineariam
seu caráter: pude contemplar alguns símbolos que se distinguem num país farto
deles, sabendo que podia me aproximar de sua existência, mas sem que essa
proximidade implicasse um conhecimento verdadeiro.
Explico: daquela janela de hotel, divisei as
dimensões reais das tão estudadas imagens da catedral de Brasília, do Teatro
Nacional, as meias esferas do Senado e do Congresso, ladeadas pelos edifícios
ministeriais entrevistos graças à luz artificial -mas sabendo de antemão que
seria impossível fazer uma ideia cabal de seu papel na vida de um país e de
seus habitantes, pois, para tanto, não basta a contemplação, mas se exige a
participação, que requer tempo.
Devo fazer uma advertência: com frequência me
indigno quando visitantes que passam fugazmente por Cuba -como era meu caso em
relação ao Brasil, onde só ficaria por uma semana- voltam a seus lugares de
origem seguros de terem conhecido meu país.
Um amor fugidio, e muitas vezes pago, com uma
mulata; uns mojitos em algum restaurante famoso onde, claro, se diz que alguma
vez esteve Hemingway (pouco importa se, de fato, esteve); um passeio pelo
Malecón, onde salva-vidas ofereceram viagens ao céu e ao inferno e onde muitas
vezes acabaram comprando "habanos" falsos; e uma tarde em uma praia
onde o sol os castigou sem piedade bastam para dizer que conheceram Cuba. E, se
são jornalistas, até para escrever sobre a realidade de um país que, aliás, nem
nós, que vivemos toda a vida na ilha (mais de meio século, no meu caso), somos
capazes de entender.
Não tinha a pretensão, portanto, de conhecer o
Brasil, de entender a magia nacional ou explicá-la, mas tão somente de
contemplar o que meus olhos encontrassem e, assim, satisfazer apetites básicos.
Na medida de minhas possibilidades, foi o que
fiz: como turista acidental, caminharia pela avenida Paulista e pela orla de
Copacabana; visitaria a catedral erguida pelo militante comunista Oscar
Niemeyer, e com ela me deslumbraria, vendo-a mais católica do que seu criador
poderia propor; contemplaria o Pão de Açúcar e, entre nuvens persistentes, o
Cristo no Corcovado; sentiria a cidade eternamente inacabada de Brasília, a
vertigem das ruas de São Paulo, com seus "homeless" estendidos nas
calçadas; e, desde o forte de Copacabana, veria sua praia e surfistas
empenhados em caçar as mansas ondas do Atlântico.
Na verdade, essa contemplação já significaria
muito para mim, e quase nem esperava obter algo mais de uma primeira visita,
lamentavelmente breve, no país de Chico Buarque e Caetano Veloso, de Rubem
Fonseca e Guimarães Rosa, de Glauber Rocha, José Wilker e Di Cavalcanti.
O ENCONTRO
Mas a magia brasileira, como um toque preciso de
Ronaldinho Gaúcho, viria ao meu encontro da maneira mais inesperada e, se bem
eu não tivesse tido tempo nem sequer de conhecer (com tudo o que o verbo
implica) uma ínfima porção do país, o espírito do Brasil me deu a oportunidade
de conversar com a pessoa que hoje rege a República. E, através dela, conhecer,
sim, a gentileza e a hospitalidade brasileiras.
Quando, em meu primeiro amanhecer no país, abri a
mensagem eletrônica que me enviava a assessora de imprensa de minha editora,
Yumi Kajiki, sob o cabeçalho que dizia "urgente - mudança no
programa", pensei, num primeiro momento, que só podia ser piada.
Para o domingo, meu programa em Brasília previa,
além da conferência na bienal, um almoço em que seria entrevistado pelo jornal
"Valor Econômico". A "mudança urgente" consistia em que, às
12h30, um chofer da Presidência da República passaria para nos buscar para
almoçar com Dilma Rousseff.
Minha surpresa maiúscula se justificava pelo fato
de que nunca antes havia recebido convite semelhante. Não sou do tipo de
escritor que busca a amizade de poderosos e famosos; tanto menos se esses
poderosos e famosos são políticos, uma espécie pela qual nutro, desde sempre,
respeito -e, cada vez mais, uma compacta desconfiança, fomentada pela
realidade.
Devo dizer que não foi tão logo que abandonei a
ideia de que seria uma brincadeira de mau gosto, embora também tenha
considerado que se tratasse de um equívoco.
Do mesmo modo, porém, preciso dizer que, depois
de informar Lucía da mudança de programa, decidi esperar pacientemente (na
verdade, impacientemente) que o encontro tivesse lugar, antes de falar dele com
qualquer outra pessoa: se, no final, pelo motivo que fosse, o convite se
frustrasse, ninguém acreditaria que aquilo não passara de imaginação de um
romancista, muito embora os que me conhecem saibam que eu seria incapaz de
inventar algo assim.
Mas, pontual, no domingo foi nos buscar Marco
Aurélio Garcia, assessor da Presidência e um dos maiores conhecedores da
atualidade latino-americana, além de amigo de Dilma Rousseff.
O carro enviado pela presidente nos levou até o
Palácio da Alvorada, a esplêndida casa criada por Niemeyer que, em um passeio
turístico matinal, havíamos visto de longe. Agora, porém, como se fosse apenas
uma visita a uma casa de arquitetura fabulosa, mas desprovida de implicações
sociais e políticas, entrávamos na residência dos mandatários brasileiros, onde
nos esperava sua habitante atual.
Há algum tempo, fiquei sabendo que Dilma Rousseff
me conhecia. Numa entrevista na eleição de 2010, um jornalista lhe perguntou o
que estava lendo, e ela respondeu que lia um romance de um cubano chamado
Leonardo Padura, "El Hombre que Amaba a los Perros", e que o livro
lhe parecia particularmente interessante pelo que podia aprender da trama
narrada.
Mas de me ler a me convidar para um almoço ao
saber que eu estava em Brasília vai um longo caminho, que se encerrou num
encontro de quase três horas, no qual falamos de literatura, da realidade
brasileira e da cubana, da saúde recuperada de Lula e, claro, de temas
candentes: o programa Mais Médicos, sustentado com médicos do meu país, e a
próxima Copa do Mundo, que tem deixado em suspenso toda a nação sul-americana
-e não só pelo lado esportivo.
Depois de dizer à presidente que me sentia
especialmente honrado, não pelo convite vir de um chefe de Estado, mas dela,
precisamente, uma pessoa pela qual -como por seu antecessor, Lula- tenho
patente admiração, os protocolos desapareceram.
Foi um almoço quase familiar, ao fim do qual saí
do Alvorada com três agradáveis evidências: a primeira foi comprovar que há no
mundo políticos que amam e respeitam a literatura; a segunda, saber que é
possível estar na companhia do presidente de um país sem sentir a pressão de
seus agentes de segurança; e a terceira, que Dilma Rousseff, apesar de ser uma
política em exercício
,
nem sempre fala como política, mas como uma pessoa normal, convicta de suas
razões e decisões.

Dilma -que, depois do café, dividiu comigo,
gostosamente no salão do Alvorada, um dos meus "cigarrillos negros"
cubanos- ainda postou, em sua conta no Twitter, comentários muito amáveis sobre
minha obra e minha pessoa. "Almocei hoje na companhia do escritor Leonardo
Padura e de sua mulher, Lucía. Foi um almoço muito interessante. Além de ser um
escritor excepcional, Padura é um ser humano fantástico. Recomendo a leitura de
seus livros", escreveu. (E aproveito para agradecer aqui -já que não tenho
conta no Twitter- pelas suas palavras.)
Minha semana brasileira terminou na noite de 16
de abril, com o lançamento de meu romance na sede carioca da Casa do Saber
abarrotada. O comentarista do livro, nessa ocasião, seria frei Betto, que,
gentil e generoso, me faria outros três obséquios: falar bem do meu trabalho,
presentear-me com um pacote daquele que, segundo ele, era o melhor café do país
e nos convidar, após o evento, para um jantar num restaurante de ambiente quase
cubano, entre chapéus tropicais e "guayaberas" caribenhas, onde, além
de servir comida deliciosa, permitia-se fumar inclusive charutos!
O toque especial daquele jantar, no qual pude
fumar meus "cigarrillos" em um lugar fechado, enquanto tomava vinho
tinto, foi encerrar uma estada intensa com uma piscadela de ironia. Naquela
mesma manhã, no aeroporto do Rio, pela primeira vez eu havia sido multado por
um policial intransigente, ao fumar na calçada do lado de fora do aeroporto.
Depois de ter soltado baforadas com a própria presidente no Palácio da
Alvorada, outra vez eu dava de cara com a magia brasileira!
LEONARDO PADURA, 58,
escritor e jornalista cubano, é colunista da Folha e autor de, entre outros,
"O Homem que Amava os Cachorros" (Boitempo) e "A Neblina do
Passado" (Benvirá).
FRANCESCA ANGIOLILLO, 41, é
editora-adjunta da "Ilustríssima".
[Fonte:
www.folha.com.br]
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