Escrito por Jacinto Guerra
Imagine o leitor que já estamos em 2014, com o Campeonato Mundial de Futebol, que teve sua abertura festiva no Estádio Mané Garrincha, em Brasília. Turistas do mundo inteiro visitam, primeiramente, a capital do País – e se encantam com a natureza do Planalto Central, visto do alto da belíssima Torre Niemeyer, orgulho do moderno patrimônio cultural do Brasil.
No interior de Minas, um grupo de turistas chega a Bom Despacho e surpreende-se com as modernas placas bilíngues de orientação turística: Matriz de Nossa Senhora do Bom Despacho – Conjolo de Granjão; Setor Bancário – Conjolos de Ingura; Vila Militar – Conjolos de Viriango, além de outras palavras e expressões de uma língua estranha para os visitantes de vários países, mas familiar para o povo da cidade da Senhora do Sol.
Mais adiante, apreciam um café da manhã ou pequeno-almoço, como se diz na França e em Portugal, saboreando os produtos Mavero, principalmente um queijo tipo Minas, fabricado em Bom Despacho, que não existe melhor em parte alguma do Brasil.
Na Rua Tiradentes, ficam intrigados com o nome da Clínica Veterinária Cambuá. Mas foram portugueses de Évora e de Vila Verde, além de turistas de Paris, Londres e Buenos Aires, que ficaram mais curiosos em saber pelo menos alguma coisa da herança cultural deixada, principalmente, pelos negros da Tabatinga e do Quenta-Sol.
A guia turística é moça bonita, uma ocaia avura, que explicou, com charme e simpatia: conjolo é casa; Deus é Granjão – daí conjolo de Granjão, casa de Deus, igreja; ingura é dinheiro; então conjolo de ingura é o mesmo que casa do dinheiro, isto é, banco, enquanto cambuá é cachorro. Explica, ainda, com certa formalidade, que viriango é soldado, assim ficando entendidas as palavras e expressões que significam Igreja Matriz, Setor Bancário, Clínica Veterinária e Vila Militar. Ia me esquecendo: em sua miniaula, a ocaia explicou, também, que mavero é leite ou lacticínio, excelente produto de nossa indústria.
Para conhecer a cidade, resolveram fazer um cumbara-tur, embarcando na cambajara do Zé Coelho, que deixou sua linha de jardineira para curimbá o turismo em Bom Despacho. Para tomar uma cerveja, um vinho, uma cachaça, tiveram que parar num conjolo de matuaba. Depois, sem deixar que as ocaia deles percebessem, os visitantes deram uma tipurada bem avura, quando viram o tamanho da radiopipa da mulher que passava na rua.
Falando sério, com os voos diretos da TAP, de Lisboa a Confins, trazendo turistas da Europa para Minas Gerais – principalmente para os jogos da Copa do Mundo em Belo Horizonte, no Rio de Janeiro e outras cidades –, o prefeito de Bom Despacho, Simão Luquine de Melo Queiroz, mais conhecido como Simão Queiroz, resolveu sair na frente e preparar a cidade para o turismo.
Com isto, a cultura afro-brasileira explodiu em Bom Despacho. Aumentou a vibração e o colorido do Reinado de N.ª Sr.ª do Rosário, enquanto a língua da Tabatinga começou a ser utilizada na educação, no comércio, na publicidade e no turismo.
Por falar nisto, como sugeriu a Lúcia Alvarenga, alguém deve instalar, em Bom Despacho, a Casa de Calçados Tiproque, lembrando a interessante palavra que significa calçado, sapato. Observe o leitor que os sons de tiproque lembram o caminhar de uma pessoa calçada com um par de tamancos. É o que os entendidos chamam de onomatopeia.
Outra curiosidade: o melhor clube da cidade vai promover uma vizunga, isto é, um baile. E olha que, nestas paragens do interior de Minas, já se promoveu até uma vizunga sob os acordes da Orquestra Strauss, de Viena, Áustria, que – na época, 1997 – apresentou-se, também, em Brasília, Goiânia, Ouro Preto, Juiz de Fora e Belo Horizonte.
Na Praça da Matriz, um telão mostra a cultura bondespachense em seus aspectos mais interessantes e curiosos, com destaque para a cultura popular. Perto do antigo coreto que existia ao lado da Matriz, aparece uma menina muito inteligente e ativa – filha de um médico e uma professora –, conversando com uns garotos que trabalhavam como engraxates.
(Na conversa, a ocaizinha avura começou a aprender com os cuetim algumas palavras da estranha língua dos negros da Tabatinga, na periferia da cidade. Mais tarde, este conhecimento virou pesquisa e estudo do mais alto nível. O novo idioma descoberto é coisa que os escravos trouxeram da África. Muitas palavras vieram de Angola, na época uma região selvagem, hoje um país em vigoroso processo de reconstrução, desenvolvendo-se em ritmo superior ao da própria China que, por sua vez, se transforma na segunda maior potência econômica do mundo).
Em Bom Despacho, como acontece quase no mundo inteiro, estuda-se o inglês, naturalmente pela sua importância como língua universal. Há interesse – também – pelo espanhol, por causa do Mercosul e por se tratar de um idioma de grande importância internacional. Mas, é claro: falamos e estudamos melhor é a nossa língua portuguesa, que possui uma literatura muita rica, figura entre os principais idiomas do mundo ocidental e é falada em diversos países e comunidades na Europa, na América, na África e na Oceania.
No entanto, nosso orgulho maior é possuir a língua do povo da Tabatinga, que foi tese da professora Sônia Queiroz, da Universidade Federal de Minas Gerais, hoje correndo mundo, nos meios universitários: Suíça, Austrália, Senegal, Estados Unidos e outros lugares onde se desenvolvem estudos lingüísticos e pesquisas de cultura popular.
Na voz do povo, é a língua da tabaca, como diz o congadeiro Zé Vieira, lembrando a Fiota e o Diguberto, falantes desse idioma especial. Entendo que poderemos chamá-lo, também, de tabatinguês ou tabaquês, por analogia com o português e outras línguas modernas.
O vocabulário tabatinguês é uma combinação, um arranjo natural de palavras e expressões africanas, principalmente de Angola e Moçambique, com o português falado na periferia da antiga Bom Despacho. Algumas palavras vieram diretamente do português lusitano, como é o caso de camboia, a nossa locomotiva, que lembra o comboio dos modernos caminhos de ferro de Portugal ou a Maria Fumaça do Museu Ferroviário de Bom Despacho.
A importante tese universitária de Sônia Queiroz resultou de pesquisas no início dos anos 1980, que se transformaram no livro Pé Preto no Barro Brancoe – A língua dos negros da Tabatinga (Editora da UFMG, Belo Horizonte,1988), lançado nesse mesmo ano na III Feira do Livro de Bom Despacho.
Trata-se de um livro imperdível para quem se interessa pela cultura do povo brasileiro. Mesmo com a objetividade de um trabalho científico, sua linguagem é permeada com o estilo elegante, claro e poético que levou Sônia Queiroz a conquistar o Prêmio de Literatura Cidade de Belo Horizonte.
Parabéns, cumbara de Bom Despacho! Axé, saravá, aleluia, para esta notável conquista nos domínios da pesquisa e da cultura afro-luso-brasileira.
Jacinto Guerra, escritor e professor, é bacharel em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais e autor de vários livros, entre os quais O gato de Curitiba– crônicas de viagem e JK – Triunfo e Exílio – Um estadista brasileiro em Portugal, editados pela Thesaurus.
[Fonte: www.aboimdanobrega.org]
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