Imbróglio
judicial fez duas editoras (e tradutoras) enfrentarem o desafio de traduzir o
cubano José Lezama Lima
Por WILSON ALVES-BEZERRA
A obra do escritor cubano José Lezama Lima (1910-1976)
tem ficado à margem do debate literário brasileiro ao longo dos últimos anos.
Responsável por um dos principais ensaios poéticos de interpretação do
continente – A Expressão Americana (1957) – e por um romance cujo impacto
estético é comparável ao de seus contemporâneos Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, e Cem Anos de Solidão,
de García Márquez (1967), Lezama tem agora retraduzido no Brasil o seu Paradiso (1966). É seu livro máximo, espécie de
romance de formação poética de José Cemí, que passa pela descoberta da poesia e
da linguagem, a morte do pai, o domínio do universo materno, a escritura e a
maturidade; uma obra na qual a linguagem e as imagens poéticas ocupam lugar
central.
Tanto Paradiso quanto A Expressão Americana têm traduções – esgotadas – publicadas nos
80, pela Brasiliense. Em catálogo, atualmente, o Brasil dispõe apenas de Fugados, bem
cuidada edição de contos do autor pela Iluminuras, com apresentação de Haroldo
de Campos. Infelizmente, nos últimos anos, Lezama não tem sido autor corrente
no mercado editorial brasileiro. Nos meios jornalísticos, o caso é parecido. Em
se tratando de Cuba, o debate literário predominante é aquele em relação ao
governo de Fidel. Ao longo dos anos, foi-se formando um cânone de autores que
orbitam em torno à figura de Castro. Ensaiar esta lista não é sem interesse:
Guillermo Cabrera Infante (Três Tristes Tigres,
1964); Jorge Edwards (Persona Non Grata,
1973), Guillermo Rosales (A Casa dos Náufragos,
1987); Reinaldo Arenas (Antes que Anoiteça,
1992), Roberto Ampuero (Nossos Anos Verde Oliva,
1999); Pedro Juan Gutiérrez (Trilogia Suja de Havana,
1999) e Yoani Sanchez (De Cuba, Com Carinho,
2009) compõem este rol. Dificilmente tais autores estariam juntos em qualquer
catálogo por afinidades estéticas ou literárias, mas o tema comum os une:
variações em torno ao tema da vida social e psíquica sob a égide de Castro.
O compreensível interesse pela vida na Ilha terminou por
ofuscar, no âmbito brasileiro, a obra de autores como Lezama, cuja política
contemporânea não era o centro dos interesses. Alejo Carpentier (1904-1980),
Virgilio Piñera (1912-1979) e Severo Sarduy (1937-1993) passam, entre nós, por
silenciamento parecido. Felizmente, no caso de Lezama, o silêncio se rompe de
forma retumbante, com um prosaico acontecimento judicial: a publicação de duas
novas traduções do romance Paradiso. Os direitos “exclusivos” de publicação foram
negociados pelas paulistanas Martins Fontes e Estação Liberdade,
respectivamente – e de modo independente – com a família de Lezama e com a Agencia Literaria Latinoamericana, órgão
estatal que negocia direitos de autores cubanos no estrangeiro.
A Estação Liberdade encomendou
da poeta Josely Vianna Baptista a tarefa de traduzir o clássico de Lezama.
Josely, que já traduzira o próprio Paradiso, contrariamente ao que se poderia supor, não
revisou sua tradução. Foi radical, abandonou-a: “Deixei totalmente de lado a
tradução de 1987 e aventurei-me novamente à selva selvaggia do Paradiso, mas agora com a experiência de mais de 50 obras traduzidas (várias do próprio Lezama) e
com a bagagem de duas viagens de prospecção a Cuba de Lezama e a suas eras
imaginárias”.
Já a Martins Fontes escalou a
experimentada poeta Olga Savary; responsável ao longo das últimas décadas por
versões brasileiras de García Lorca, Pablo Neruda e Octavio Paz, entre muitos
outros. Paraense estabelecida no Rio, Savary faz parte da tradição de
tradutores autodidatas e tem sido, ao longo das décadas, importante difusora
das letras hispânicas no país.
O leitor saiu ganhando. As
duas editoras acertaram ao escolher tradutoras experientes e que são também poetas.
Enfrentar a escrita caudalosa de Lezama – que já foi qualificada pela crítica
brasileira Chiampi como “texto ilegível” – é tarefa para quem pode reconhecer a
importância da dimensão do significante e a eloquência de imagens poéticas e
metáforas muitas vezes incompreensíveis. O desafio, enfim, é o de traduzir a
obscura proliferação de Lezama e recriar-lhe a beleza e o enigma em português.
Ambas as tradutoras saíram vitoriosas, em textos fluidos e não poluídos com
constelações de notas de rodapés ou glossários. Elas optam, muitas vezes, por
legar ao leitor a dúvida. Um trecho do romance indica uma boa aproximação ao métier de Lezama: “Terminou o Coronel
rindo, como se tivesse se abandonado mais à exaltação verbal do que à sua
veracidade”.
No primeiro capítulo, surgem o
cozinheiro Izquierdo e seu patrão, o Coronel. Num espaço de poucas páginas,
encontramos as seguintes imagens associadas a eles, que contam a demissão do
mulato pelo Coronel (tradução de Baptista): “Aproximava-se o Coronel (...) com
o mesmo gesto da burguesia situada num cancã pintado por Seurat” (p. 59); “O
melão debaixo do braço era um dos símbolos mais explosivos de um de seus dias
redondos e plenos” (p. 59); “Izquierdo, hierático como um vendedor de caçarolas
no Irã” (p. 60); “todo seu rosto metamorfoseado em gárgula começava a soltar
lágrimas pelas orelhas, pela boca, escorrendo pelas narinas como um filete
esquecido” (p. 60).
Em Lezama, a imagem pode ser
metáfora, ou pode ser descrição literal, tomando o lugar da realidade. Dito de
outra forma, uma imagem pode ilustrar uma comparação ou pode realizar-se,
criando o que o autor chama de sobrenatureza. Entrar no Paradiso é celebrar o reino da forma, uma
experiência estética ímpar. Muita sutileza em tempos de se discutir política?
Sim, e o nome disso é literatura. Aquela que finalmente os brasileiros são de
novo convidados a conhecer.
WILSON
ALVES-BEZERRA É ESCRITOR, TRADUTOR E PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE LETRAS DA
UFSCAR
COMPARE
AS VERSÕES
Original
de Lezama:
"El hermano de la señora Rialta, que ya
exigirá, de acuerdo con su peculiar modo, penetrar en la novela, decía de él,
zumbando las zetas: Es como la cerveza que quitándole el tapón se le va la
fortaleza."
Tradução
de Olga Savary:
“O irmão da senhora Rialta,
que agora exigia, como lhe é peculiar, participar do romance, dizia dele,
zumbindo os zês: É como a cerveja que, tirando-lhe a tampa, zarpa sua
fortaleza.”
Tradução
de Josely Baptista Vianna:
"O irmão de dona Rialta,
que já irá exigir, à sua peculiar maneira, penetrar no romance, dizia dele,
zumbindo os zês: É como a cerveza que sem a tampa, perde a
fortaleza."
PARADISO
Autor: José Lezama Lima
Tradutora: Josely Vianna Baptista
Editora: Estação Liberdade (616 págs., R$ 74)
PARADISO
Autor: José Lezama Lima
Tradutora: Olga Savary
Editora: Martins Fontes (624 págs., R$ 74,90)
[fonte: www.estadao.com.br]
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