Passado o fôlego das grandes manifestações de junho e julho deste ano,
já temos um distanciamento mínimo para tentar analisar seus aspectos com
alguma frieza. E uma das facetas mais ressaltada no calor da hora,
inclusive neste Observatório (ver “Imprensa internacional tenta entender movimento no Brasil“),
foi a tal “perplexidade” com que classe política, intelectuais e a
própria imprensa encararam os protestos em massa – e furiosos – de um
povo historicamente estereotipado como pacífico, acomodado e “cordial”.
Se a perplexidade entre os jornalistas brasileiros já foi grande, que
se imagine a dos coleguinhas estrangeiros, que precisaram de muitos
intérpretes da realidade nacional para dar conta de comentar,
contextualizar e decodificar os fatos nas ruas. Essa tarefa poderia até
ser amenizada se houvesse algum tipo de cobertura regular sobre o
Brasil, ainda que relegada aos diminutos espaços da cobertura
internacional e misturada aos exóticos faits-divers que os “gringos” tanto gostam de catar em nosso país. Entretanto, a mídia estrangeira não está acostumada a cobrir o Brasil.
Houve uma época em que virou até piada: a cada vez que algo do Brasil era citado no New York Times,
o noticiário de horário nobre na TV daqui repercutia a menção, ainda
que esta fosse numa constrangedora tripinha de colunão em página par.
Além de assinar atestado de complexo colonial, tal atitude confirmava
que as aparições do país na imprensa estrangeira eram raríssimas, tão
excepcionais a ponto de se desdobrarem em notícia em si, para a gente.
Hoje, o Brasil aparece muito mais nas páginas de jornais e nos
noticiários de TV de outros países, e com pautas além do exótico ou do
trágico, graças principalmente ao salto de desenvolvimento
socioeconômico dado na última década. Mas o país não é fornecedor
permanente de pautas, nem possui pelo menos um único serviço
jornalístico que seja referência global em informações domésticas
traduzidas, consequentemente tendo uma presença midiática mundial muito
inferior à de países com patamar de desenvolvimento semelhante, como a
Índia, ou vizinhos, como a Venezuela – e parte disso é culpa nossa.
Imagem externa
Ao contrário de diversos países, o Brasil não tem uma fonte regular de
notícias voltadas para o exterior que sirva de referência aos
jornalistas estrangeiros na hora de cobrir o país. Não há, aqui, sequer
um veículo de comunicação ou uma agência de notícias que publique em
inglês ou espanhol, em tempo real ou pelo menos periodicidade diária,
conteúdo jornalístico brasileiro com os olhos no público lá fora. Não
temos uma BBC World Service (pública), nem uma CNN internacional
(privada), muito menos um jornal diário impresso em inglês e circulado
pelos aeroportos e principais capitais do mundo. Não temos uma agência
de notícias que forneça serviço ininterrupto e sistemático em língua
estrangeira para clientes espalhados pelos cantos do planeta, nem
estatal nem corporativa. Pior: nem mesmo em espanhol, para atingir pelo
menos o público da América Latina.
A cada vez que surge a demanda por apurar uma pauta brasileira,
jornalistas do resto do mundo têm de se desdobrar para encontrar fontes
aqui que falem inglês, usar Google Translator para entender nossos sites
de notícias e websites institucionais em geral (quase nenhum com versão
em outra língua, mesmo os oficiais) ou perguntar aos seus coleguinhas
tupiniquins, com sotaque, “what the *** estar acontecendo aí”?
Os poucos gatos pingados que entendem o português – incluindo alguns
brasileiros salpicados por grandes redações do mundo, como as da BBC, da
Deutsche Welle e do próprio New York Times – ajudam
nessas horas, mas não dão conta da cobertura cotidiana. Esse trabalho
poderia ser muito facilitado se tivessem uma agência daqui, ou um
veículo ou portal, que pudessem usar como primeira cartada na apuração.
Considerando que apenas poucas empresas de mídia estrangeira têm
correspondentes próprios aqui – grande parte dos quais é repórter
fotográfico –, os veículos que tentam falar do Brasil ficam reféns das
agências transnacionais (AP, AFP e Reuters, e um pouco da EFE, DPA e
ANSA em menor escala) para obter informações e imagens. Na prática,
graças ao constrangimento do tempo nas coberturas de hard news, acabam tendo de recorrer ao que recebem por elas.
Reparemos que não é assim na contramão: se, nas editorias de
Internacional daqui, queremos tratar algo dos Estados Unidos, abrimos
logo nos sites do New York Times e do Washington Post, ou dos novatos Huffington Post e Politico, ou sintonizamos na CNN, na NBC ou até na Fox News. Se a pauta é no Reino Unido, vêm à mente a BBC, o Guardian, o Times de Londres, a revista The Economist. Vale o mesmo para a França com Le Monde e France24, para a Alemanha com a DW e a Spiegel, para a Espanha com TVE e El País, ou a Itália com a RAI, o Corriere della Sera e o La Repubblica.
Para não cometer a covardia de nos comparar apenas com os países ricos,
mesmo olhando para os outros países do grupo BRICS vemos exemplos de
mídia for export, como os jornais St. Peterburg Times, The Moscow Times, Beijing Today, Shanghai Daily e o também chinês Global Times.
Rússia e China, aliás, tratam o assunto como questão estratégica, tanto
que investiram milhões de rublos e yuans para montar suas respectivas
redes de televisão e jornais com edições locais: a RT e a Russia Beyond
the Headlines (cuja versão brasileira, Gazeta da Rússia, circula encadernada na Folha de S.Paulo), num caso, e a CNTV e o China Daily,
no outro. Obviamente, a Índia e a África do Sul têm a vantagem de ter o
inglês entre suas línguas oficiais e idioma canônico para suas
imprensas, mas suas agências de notícias – PTI e SAPA, respectivamente –
trabalham em estreita parceria com a Reuters (ainda que assimétrica)
para redistribuir suas notícias domésticas no mercado internacional.
Mesmo na América Latina, vizinhos têm exemplos de veículos para alimentar a demanda jornalística estrangeira: o Buenos Aires Herald é um título consolidado na Argentina, além de a Télam, a agência de notícias oficial, ter serviço em inglês (ver aqui). Temos exemplos ainda no Chile, com o Santiago Times, e o Honduras This Week, publicado em Tegucigalpa, e as agências Notimex (México), AVN (Venezuela) e Prensa Latina (Cuba), que publicam em seu espanhol nativo e também em inglês.
Mas o cenário não se esgota. Se ainda contarmos outros países em
desenvolvimento (ou “em transição”, como diz o jargão diplomático para
as repúblicas ex-socialistas), a lista se recheia de exemplos como The Nation (Tailândia), Hürriyet Daily News (Turquia), The National (Emirados Árabes), The Sofia Globe (Bulgária), The Tripoli Post (Líbia), UB Post (Mongólia), Nepali Times, Croatian Times, The Borneo Post, Bhutan Observer e The Times of Central Asia (Quirguistão).
Cada um desses países tem referências internacionais de bom jornalismo
voltado para fora, com canais em inglês (ou outras línguas “globais”)
ou, no mínimo, versões concisas de seus websites em idiomas estrangeiros
acessíveis ao público externo. Investem nisso como forma de incentivar
sua visibilidade no dia a dia do noticiário internacional, o que tem
consequências no comércio, nos investimentos e no desenvolvimento: “quem
não é visto não é lembrado”. Além disso, sabem, por consciência
nacional ou política de Estado, que exportar notícias é uma forma de
controle da própria imagem no exterior, definido em última análise uma
espécie de “soberania informativa”.
Ângulos próprios
O Brasil, não. Seja por estreiteza dos nossos empresários de mídia ou
por falta de prioridade em nossa política pública de comunicação, o país
até hoje não tem um jornal diário em inglês ou uma agência exportadora
de notícias. Nossa agência estatal, a Agência Brasil, subordinada à EBC,
limita-se a publicar um clipping diário em inglês com duas ou três
notícias por dia (ver aqui),
enquanto nossas agências privadas (Agência Estado, Folhapress, Agência O
Globo) se limitam a revender conteúdo já produzido para os jornais de
seus respectivos conglomerados, tudo em português, de olho em veículos
menores do interior do país, e não em potenciais clientes estrangeiros.
Canais internacionais da TV Globo e da TV Record se limitam a repetir a
programação nacional, mirando nos brasileiros residentes no exterior,
sem conteúdo em outras línguas para estrangeiros.
Houve, sim, algumas tentativas, ainda que fracassadas. Nosso primeiro
magnata das comunicações, Assis Chateaubriand, chegou a lançar uma
edição em espanhol da revista O Cruzeiro, que durou pouco mas
circulou pelos vizinhos da América Latina na segunda metade dos anos
1950. No início do atual milênio, o empresário Nelson Tanure também
aventurou-se com a Brazil International Gazette (BIG), apenas
em formato digital e distribuída por e-mail (sem website próprio). Desde
2009, a colônia de estrangeiros anglófonos no Rio de Janeiro publica The Rio Times, antigo The Gringo Times,
com uma edição online permanente e uma impressa mensal, mas voltada
para os expatriados residentes aqui – ou seja, com mais informação local
e menos contextualização para leitores que estejam fora da realidade
brasileira.
A própria EBC chegou a ter o Canal Integración de 2004 a 2010, com uma
hora semanal de programação em espanhol soterrada pelo resto em
português. Há menos de um mês, apenas, a empresa anunciou que faria
parte de um portal jornalístico conjunto alimentado pelas agências
estatais da região, a ULAN (ver aqui).
Assim, a maior inserção internacional do Brasil, tanto na economia
global quanto no cenário diplomático, contrasta com uma ausência
aberrante na paisagem midiática. Fazemos parte dos BRICS mas perdemos
para eles em investimento em comunicação internacional e autoimagem
midiática para o mundo. Perpetuamos uma condição de dependência no fluxo
internacional de notícias, ficando atrás de países com PIB e relevância
geopolítica muito menor – tipo o Quirguistão –, mas que acordaram para a
importância estratégica de ter uma mídia de exportação. Sem ela, o
Brasil fica sem voz própria no exterior.
Com isso, perdemos a chance de alimentar a imprensa internacional com
nossas próprias notícias – escritas, interpretadas, explicadas e
contextualizadas por nós mesmos –, abrindo mão da soberania informativa.
***
Pedro Aguiar é jornalista e professor
[Fonte: www.observatoriodaimprensa.com.br]
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