Por Alvaro Costa e Silva
Em tempos de apostas, taquemos fichas. Há
três escritores latino-americanos que, depois de mortos, serão muito
mais lidos e discutidos do que em vida: o argentino Juan José Saer, o
mexicano Jorge Ibargüengoitia e o uruguaio Mario Levrero. Este era o
único ainda não traduzido no Brasil — até o aparecimento da novela
“Deixa comigo”.
É um duplo tiro na mosca: o livro foi escolhido
para inaugurar a coleção Otra Língua, com a qual a editora Rocco
apresenta o suprassumo da literatura contemporânea escrita em espanhol
nas Américas — e um melhor cartão de visitas não podia haver. Entre as
obras de Levrero, é a mais indicada, também, para se penetrar no
universo do escritor, que, à falta de palavra melhor, os críticos
costumam chamar de “inclassificável”. Digamos que, do ponto de vista do
leitor, seja um mundo de vício, pois, quando se começa, não se pode mais
parar de ler Levrero.
Para sorte dos futuros fissurados, ainda
há um bom estoque de material a traduzir. Sempre pelas beiradas e para
ganhar a vida, o homem — nascido em Montevidéu no dia 23 de janeiro de
1940 — produziu muito e de tudo: além de romances e contos, histórias em
quadrinhos, cartuns, quebra-cabeças, palavras cruzadas e até um manual
de parapsicologia (escrito à vera, mas que pode ser lido como ficção).
Em algumas de suas colaborações com revistas uruguaias e argentinas
assinou como Jorge Varlotta (que é a metade do seu nome inteiro, Jorge
Mario Varlotta Levrero).
Estreou com a novela “Gelatina” em
1968, seguido do volume de contos “La máquina de pensar en Gladys”,
publicado em 1970, histórias algo fantásticas no enredo, algo mecânicas
no estilo, experimentações iniciadas quatro anos antes. O resultado
anuncia o que, no futuro, seria conhecido como “realismo Levrero”, ou
seja, o retrato fiel de um mundo que só ele consegue enxergar daquela
maneira.
Em 1975 publicou, como Jorge Varlotta, “Nick Carter se
divierte mientras el leitor es asesinado y yo agonizo”, paródia em cima
do personagem-detetive em série criado pelo americano John R. Coryell no
fim do século 19. Uma possível comparação: os thrillers bem-humorados
de Luis Fernando Verissimo, em especial “O jardim do diabo”.
O
que marca o período inicial da sua carreia é a “Trilogia involuntária”,
composta pelos romances “La ciudad” (escrito em 1966 e publicado em
1970), “El lugar” (de 1969, com primeira edição em 1982) e “París”
(escrito em 1970 e editado em 1979). A dificuldade de publicação dá bem a
medida das atribulações de Levrero, cuja obra, em pequenas tiragens
quase artesanais, teve circulação restrita ao Uruguai até a década de
1990, quando ele foi “descoberto” na Espanha.
A “Trilogia
involuntária” é assumidamente influenciada pela literatura de Franz
Kafka, ou, nas palavras do autor, “uma tentativa de tradução de Kafka
para o uruguaio”. Nas últimas obras do escritor, em que predomina a
forma dos diários — “El discurso vacío” e “La novela luminosa” são os
melhores exemplos — também é visível a dependência kafkiana, no exato
sentido do termo, não no deformado pelo lugar comum. Mas, como nota o
escritor chileno Alejandro Zambra, “a tradução fracassou e, graças a
esse fracasso, Levrero acabou escrevendo uma obra personalíssima”.
Seu
breve romance de 1996, o caligráfico “El discurso vacío”, além de
estabelecer uma mudança de percurso, é uma obra de arte autobiográfica
que beira a perfeição, talvez apenas igualada, recentemente na América
Latina, por outro mestre do “eu fingidor”, o colombiano radicado no
México Fernando Vallejo, com seu “O despenhadeiro”.
Ponto de
culminância dessa fase autobiográfica, ficção sem ter uma sequer palavra
inventada, “La novela luminosa”, publicada em 2005 e cuja preparação
foi motivada por uma bolsa da Fundação Guggenheim, deixou os leitores
fiéis travados de abstinência: como aceitar que, depois desse livro
assombroso, não teremos mais Levrero? O autor morreu no dia 30 de agosto
de 2004, em Montevidéu.
Ao contrário da geração de autores
latino-americanos anterior à sua, Mario Levrero não usava a literatura
para criar mitologias; queria escrever, apenas. Essa impressão fica
nítida com a leitura de “Deixa comigo” (“Dejen todo em mis manos” no
original, de 1996). Segundo o escritor Joca Reiners Terron, curador da
coleção Otra Língua, tradutor e autor da apresentação do livro, nele há
“sobriedade estilística aliada à releitura quase humorística do romance
noir — gênero pouco afeito à exposição luminosa operada por Levrero,
cujo improvável acerto se deve a seu talento para criar tramas de efeito
que não dependam das causas”.
A abertura é de antologia. “— O
romance é bom — disse o Gordo, e fez uma pausa significativa. — Mas... —
Eu podia ter imaginado, pois sei há uns quantos anos que meus romances
pertencem a essa categoria; bons, mas... Os críticos se esforçam para
classificar minha literatura como pertencente a essa ou àquela
categoria, porém os editores são mais realistas, e unânimes; só existe
uma categoria possível para minha literatura: boa, mas...”.
Diante
de uma situação econômica periclitante, o narrador aceita a missão —
palavra-chave levreriana — de viajar ao interior do Uruguai à procura de
um certo Juan Perez, que enviara a um editor, sem endereço de
remetente, o manuscrito de um romance que enlouquecera “os suecos”
(leia-se alguma fundação cheia da grana que bancava o negócio das
letras). Mesmo sabendo que não é Philip Marlowe, o pobre escritor topa a
parada, morde um adiantamento em dólares e põe-se a caminho de
Penurias, lugarejo vizinho a Miserias e Desgracias.
Na hora de
ler o tal manuscrito, o escritor descobre, sem inveja, que o livro é
excelente: “(...) não pude soltá-lo até o final. Tinha um estilo plano,
muito simples, e vigoroso, e colorido”. (Ora, esta é a novela que nós
estamos lendo, fascinados. E não só: morrendo de rir, também. Das obras
do autor, é a mais engraçada, capaz de produzir não apenas aquele
sorriso diante da página, mas, algumas vezes, gargalhadas no meio da
madrugada.)
Antes de pôr o pé na estrada e iniciar suas
peripécias, o narrador cochila na poltrona da editora durante um minuto
ou dois, e lhe aparece a figura de um homem com um grande nariz
vermelho, de palhaço, balbuciando alguma coisa em francês. Esse trecho,
que corre o risco de passar batido na leitura, sugere que as aventuras
do detetive improvisado podem não passar de um pesadelo (ou sonho
incômodo) integralmente narrado — a rigor, uma experiência terapêutica.
Similar ao que o cinema fez inúmeras vezes com maior ou menor sucesso, e
aqui surge, ao menos na cabeça deste resenhista, a imagem de Edward G.
Robinson — um ator talhado para interpretar o papel do narrador de
Levrero — no filme “Um retrato de mulher”, de Fritz Lang.
O
volume da Rocco apresenta ainda “Uma entrevista imaginária com Mario
Levrero”, pelo próprio, que saiu como posfácio a “El portero y el otro”,
seleta de contos, crônicas e fragmentos de romances lançada pela
editora uruguaia Arca em 1992. Numa aula de como entrevistar um escritor
e de como um escritor deve responder a uma entrevista, Levrero se
revela por inteiro em suas idiossincrasias, desejos e técnicas.
Sobre
sua adicção a romances policiais, responde: “É o que acaba sendo mais
eficaz para mim como fuga da realidade. E antes que me pergunte por que
desejo escapar da realidade, lembro a você que estou vivendo um tempo de
autossequestro: estou me obrigando a trabalhar para ganhar a vida,
porque já faz bastante tempo que as condições de nosso país não permitem
a subsistência marginal que, em seu momento, me permitiu escrever”.
“O romance é bom, mas...”, diria o Gordo. No caso de Mario Levrero, mas é mais.
Alvaro Costa e Silva é jornalista
[Fonte: www.oglobo.globo.com]
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