segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Literatura inventiva do uruguaio Mario Levrero chega ao Brasil

"Deixa comigo", de Mario Levrero. Tradução de Joca Reiners Terron. Ed. Rocco, 160 pgs. R$ 27


Por Alvaro Costa e Silva


Em tempos de apostas, taquemos fichas. Há três escritores latino-americanos que, depois de mortos, serão muito mais lidos e discutidos do que em vida: o argentino Juan José Saer, o mexicano Jorge Ibargüengoitia e o uruguaio Mario Levrero. Este era o único ainda não traduzido no Brasil — até o aparecimento da novela “Deixa comigo”.

É um duplo tiro na mosca: o livro foi escolhido para inaugurar a coleção Otra Língua, com a qual a editora Rocco apresenta o suprassumo da literatura contemporânea escrita em espanhol nas Américas — e um melhor cartão de visitas não podia haver. Entre as obras de Levrero, é a mais indicada, também, para se penetrar no universo do escritor, que, à falta de palavra melhor, os críticos costumam chamar de “inclassificável”. Digamos que, do ponto de vista do leitor, seja um mundo de vício, pois, quando se começa, não se pode mais parar de ler Levrero.

Para sorte dos futuros fissurados, ainda há um bom estoque de material a traduzir. Sempre pelas beiradas e para ganhar a vida, o homem — nascido em Montevidéu no dia 23 de janeiro de 1940 — produziu muito e de tudo: além de romances e contos, histórias em quadrinhos, cartuns, quebra-cabeças, palavras cruzadas e até um manual de parapsicologia (escrito à vera, mas que pode ser lido como ficção). Em algumas de suas colaborações com revistas uruguaias e argentinas assinou como Jorge Varlotta (que é a metade do seu nome inteiro, Jorge Mario Varlotta Levrero).

Estreou com a novela “Gelatina” em 1968, seguido do volume de contos “La máquina de pensar en Gladys”, publicado em 1970, histórias algo fantásticas no enredo, algo mecânicas no estilo, experimentações iniciadas quatro anos antes. O resultado anuncia o que, no futuro, seria conhecido como “realismo Levrero”, ou seja, o retrato fiel de um mundo que só ele consegue enxergar daquela maneira.

Em 1975 publicou, como Jorge Varlotta, “Nick Carter se divierte mientras el leitor es asesinado y yo agonizo”, paródia em cima do personagem-detetive em série criado pelo americano John R. Coryell no fim do século 19. Uma possível comparação: os thrillers bem-humorados de Luis Fernando Verissimo, em especial “O jardim do diabo”.

O que marca o período inicial da sua carreia é a “Trilogia involuntária”, composta pelos romances “La ciudad” (escrito em 1966 e publicado em 1970), “El lugar” (de 1969, com primeira edição em 1982) e “París” (escrito em 1970 e editado em 1979). A dificuldade de publicação dá bem a medida das atribulações de Levrero, cuja obra, em pequenas tiragens quase artesanais, teve circulação restrita ao Uruguai até a década de 1990, quando ele foi “descoberto” na Espanha.

A “Trilogia involuntária” é assumidamente influenciada pela literatura de Franz Kafka, ou, nas palavras do autor, “uma tentativa de tradução de Kafka para o uruguaio”. Nas últimas obras do escritor, em que predomina a forma dos diários — “El discurso vacío” e “La novela luminosa” são os melhores exemplos — também é visível a dependência kafkiana, no exato sentido do termo, não no deformado pelo lugar comum. Mas, como nota o escritor chileno Alejandro Zambra, “a tradução fracassou e, graças a esse fracasso, Levrero acabou escrevendo uma obra personalíssima”.

Seu breve romance de 1996, o caligráfico “El discurso vacío”, além de estabelecer uma mudança de percurso, é uma obra de arte autobiográfica que beira a perfeição, talvez apenas igualada, recentemente na América Latina, por outro mestre do “eu fingidor”, o colombiano radicado no México Fernando Vallejo, com seu “O despenhadeiro”.

Ponto de culminância dessa fase autobiográfica, ficção sem ter uma sequer palavra inventada, “La novela luminosa”, publicada em 2005 e cuja preparação foi motivada por uma bolsa da Fundação Guggenheim, deixou os leitores fiéis travados de abstinência: como aceitar que, depois desse livro assombroso, não teremos mais Levrero? O autor morreu no dia 30 de agosto de 2004, em Montevidéu.

Ao contrário da geração de autores latino-americanos anterior à sua, Mario Levrero não usava a literatura para criar mitologias; queria escrever, apenas. Essa impressão fica nítida com a leitura de “Deixa comigo” (“Dejen todo em mis manos” no original, de 1996). Segundo o escritor Joca Reiners Terron, curador da coleção Otra Língua, tradutor e autor da apresentação do livro, nele há “sobriedade estilística aliada à releitura quase humorística do romance noir — gênero pouco afeito à exposição luminosa operada por Levrero, cujo improvável acerto se deve a seu talento para criar tramas de efeito que não dependam das causas”.

A abertura é de antologia. “— O romance é bom — disse o Gordo, e fez uma pausa significativa. — Mas... — Eu podia ter imaginado, pois sei há uns quantos anos que meus romances pertencem a essa categoria; bons, mas... Os críticos se esforçam para classificar minha literatura como pertencente a essa ou àquela categoria, porém os editores são mais realistas, e unânimes; só existe uma categoria possível para minha literatura: boa, mas...”.

Diante de uma situação econômica periclitante, o narrador aceita a missão — palavra-chave levreriana — de viajar ao interior do Uruguai à procura de um certo Juan Perez, que enviara a um editor, sem endereço de remetente, o manuscrito de um romance que enlouquecera “os suecos” (leia-se alguma fundação cheia da grana que bancava o negócio das letras). Mesmo sabendo que não é Philip Marlowe, o pobre escritor topa a parada, morde um adiantamento em dólares e põe-se a caminho de Penurias, lugarejo vizinho a Miserias e Desgracias.

Na hora de ler o tal manuscrito, o escritor descobre, sem inveja, que o livro é excelente: “(...) não pude soltá-lo até o final. Tinha um estilo plano, muito simples, e vigoroso, e colorido”. (Ora, esta é a novela que nós estamos lendo, fascinados. E não só: morrendo de rir, também. Das obras do autor, é a mais engraçada, capaz de produzir não apenas aquele sorriso diante da página, mas, algumas vezes, gargalhadas no meio da madrugada.)

Antes de pôr o pé na estrada e iniciar suas peripécias, o narrador cochila na poltrona da editora durante um minuto ou dois, e lhe aparece a figura de um homem com um grande nariz vermelho, de palhaço, balbuciando alguma coisa em francês. Esse trecho, que corre o risco de passar batido na leitura, sugere que as aventuras do detetive improvisado podem não passar de um pesadelo (ou sonho incômodo) integralmente narrado — a rigor, uma experiência terapêutica. Similar ao que o cinema fez inúmeras vezes com maior ou menor sucesso, e aqui surge, ao menos na cabeça deste resenhista, a imagem de Edward G. Robinson — um ator talhado para interpretar o papel do narrador de Levrero — no filme “Um retrato de mulher”, de Fritz Lang.

O volume da Rocco apresenta ainda “Uma entrevista imaginária com Mario Levrero”, pelo próprio, que saiu como posfácio a “El portero y el otro”, seleta de contos, crônicas e fragmentos de romances lançada pela editora uruguaia Arca em 1992. Numa aula de como entrevistar um escritor e de como um escritor deve responder a uma entrevista, Levrero se revela por inteiro em suas idiossincrasias, desejos e técnicas.

Sobre sua adicção a romances policiais, responde: “É o que acaba sendo mais eficaz para mim como fuga da realidade. E antes que me pergunte por que desejo escapar da realidade, lembro a você que estou vivendo um tempo de autossequestro: estou me obrigando a trabalhar para ganhar a vida, porque já faz bastante tempo que as condições de nosso país não permitem a subsistência marginal que, em seu momento, me permitiu escrever”.

“O romance é bom, mas...”, diria o Gordo. No caso de Mario Levrero, mas é mais.

Alvaro Costa e Silva é jornalista

[Fonte: www.oglobo.globo.com]

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