Arquivo está recheado de manuscritos, objetos pessoais, textos consagrados e inéditos
Por Janaína Figueiredo
RIO — O lugar escolhido para guardar um verdadeiro tesouro literário
foi um típico casarão antigo de Buenos Aires, daqueles que lembram as
primeiras décadas do século passado. Quem passa pela pequena porta, no
bairro de San Cristóbal, vê apenas uma escada de mármore e a placa da
Fundação Tomás Eloy Martínez, criada por um dos sete filhos (Ezequiel
Martínez) do célebre jornalista e escritor argentino, morto em 2010, aos
75 anos. O que poucos sabem é que no fim dessa escada está o arquivo
pessoal de Eloy Martínez, uma herança de valor incalculável, que sua
família, seguindo à risca a vontade do escritor, colocou à disposição de
estudantes de jornalismo, professores de literatura, acadêmicos em
geral e todos que estiverem interessados na obra desse grande nome da
literatura latino-americana. A lista de documentos é riquíssima e
abrangente: manuscritos (digitais e em papel) de novelas e contos
inéditos e de seus maiores sucessos, entre eles “Santa Evita” e “O
romance de Perón”, entre outras maravilhas. Tudo foi cuidadosamente
guardado pelo escritor ao longo de décadas (nos diferentes países em que
viveu, como Venezuela e Estados Unidos) e organizado, durante mais de
um ano, por uma equipe comandada pela comunicadora social Ana Prieto.
‘Tomás guardava tudo’
Para
ela, que por mais de 12 meses trabalhou de sol a sol com Florencia
Buret, Lucia Capalbi e Vanesa Pafundo, o principal objetivo do arquivo é
“que a obra de Tomás circule, principalmente a parte menos conhecida e
que não está nas livrarias”.
— Tomás guardava tudo, desde
manuscritos de suas novelas, até artigos publicados em jornais. Grande
parte do arquivo está em papel, porque ele só começou a usar computador
em meados da década de 1990 — conta Ana, agora encarregada de
administrar o arquivo.
A parte mais difícil de seu trabalho,
reconhece ela, foi pensar a melhor maneira de catalogar uma quantidade
tão grande de material. Nos primeiros três meses, lembra Ana, “a
sensação que tínhamos era de que não acabaríamos nunca”. Mas as soluções
foram aparecendo e com elas tudo foi ficando mais fácil. Finalmente, o
arquivo foi dividido em três partes essenciais: manuscritos originais
(em papel e versão digital); pesquisas (algumas exaustivas) realizadas
por Eloy Martínez antes de escrever; e publicações na imprensa (artigos
do escritor, críticas de sua obra e entrevistas). Mas não termina por
aí. No arquivo podem ser encontradas, ainda, cartas enviadas ao escritor
por colegas como o argentino Ernesto Sábato, o peruano Mario Vargas
Llosa e o paraguaio Augusto Roa Bastos.
Entre os inéditos de Eloy
Martínez, destaca-se a novela “El Olimpo” (leia trecho aqui), que o
escritor começou a preparar em 2006 e na qual trabalhou até o fim da
vida. Apesar de ter lutado vários anos contra um câncer, ele nunca parou
de trabalhar (várias horas por dia).
— Muitas vezes penso que ele
esticou sua vida ao máximo, pela vontade de terminar a novela. É um
texto curto, talvez seja publicado, não sabemos — diz Ezequiel, que
divide seu tempo entre a fundação, um dos últimos desejos do pai, e a
edição do suplemento cultural do jornal “Clarín”.
A última novela
de Eloy Martínez conta uma história na qual os clássicos deuses do
Olimpo grego chegam, em sua busca pela mortalidade, ao centro
clandestino de detenção, tortura e assassinato de presos políticos El
Olimpo, que funcionou durante a última ditadura militar (1976-1983), no
bairro portenho de Floresta. Como milhões de argentinos, Eloy Martínez
teve sua vida (em seu caso, também sua obra) marcada pelo regime militar
mais sinistro e violento da História do país. O escritor rumou para o
exílio e, quando falava dessa experiência, revivia o sofrimento,
sobretudo pela distância dos filhos. Esse passado que lhe causou tanta
dor está presente em seu arquivo, não só em algumas novelas publicadas,
como “Purgatório” (que fala sobre os desaparecimentos), e inéditas, como
“El Olimpo”. Dezenas de artigos, colunas e entrevistas lembram sua
passagem pelo jornal “El Nacional”, de Caracas, um de seus refúgios nos
anos de chumbo.
Até mesmo para Ezequiel, o arquivo do escritor
trouxe descobertas. O trabalho de seu pai na Venezuela, por exemplo, era
desconhecido pela parte da família que ficou na Argentina. Eloy
Martínez editou durante alguns anos o suplemento literário do diário de
Caracas e realizou entrevistas históricas com os compatriotas Ernesto
Sábato e Jorge Luis Borges. A conversa com Sábato foi publicada em 1979,
no auge da repressão a opositores do regime militar argentino. “Durante
duas manhãs dialoguei com Ernesto Sábato, autor de ‘Sobre heróis e
túmulos’, na casa ensombrecida de magnólias que habita há mais de três
décadas... Expliquei a Sábato que em Caracas não se conheciam seus
comentários sobre ‘Abaddón, o exterminador’, a novela que publicou em
1974 e que já tinha vendido (antes da crise) 180 mil exemplares. Mas
manter um diálogo sobre esse assunto lhe pareceu impertinente, agora que
os argentinos estão obrigados a preocupar-se mais com a salvação de sua
comunidade do que em cultivar sua fama. Decidimos, então, passar por
cima de uma literatura em agonia e refletir sobre a situação política (e
também moral) dos argentinos”, explica Eloy Martínez, na introdução de
uma entrevista que qualquer jornalista ou simples fã dos dois escritores
adoraria ler.
Preservar e manter unido todo esse acervo era uma
das grandes preocupações do escritor. Em seu testamento, Eloy Martínez
deixou um montante de dinheiro destinado à sua futura fundação, onde
estaria, e como ele queria, seu arquivo. E assim aconteceu.
— Ele
queria que tudo fosse aproveitado, sua biblioteca e seu arquivo, e hoje
esse material está disponível para qualquer pessoa que tenha um
interesse genuíno — assegura o diretor da fundação, que tem vários
projetos em mente, entre eles, parcerias com faculdades de Jornalismo e
um prêmio literário, ambos pensados como incentivos aos novos talentos,
algo que Eloy Martínez sempre considerou importantíssimo. Em entrevista
ao GLOBO, uma das últimas que concedeu antes de morrer, o escritor
defendeu a necessidade de cultivar e promover o que chamava de “um
jornalismo de qualidade”, em meio ao que já era uma explosão de blogs e
redes sociais.
— São formas de comunicação, bem-vindas, mas não jornalismo — enfatizara o autor.
Era
um recado para as novas gerações de jornalistas e escritores, com as
quais se entendia muito bem. Seus anos como professor e diretor do
programa de Estudos Latino-americanos da Universidade de Rutgers, nos
Estados Unidos (suas aulas e anotações também estão no arquivo),
aproximaram-no dos mais jovens. Os que, na visão de Ana, devem “fazer
circular a obra de Tomás”. É para eles, principalmente, que as portas do
arquivo estão abertas.
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