As suspeitas de envenenamento ganharam mais força essa semana quando o ex-chofer de Pablo Neruda, Manuel Anaya, declarou à agência italiana ANSA, que o possível responsável pela intoxicação foi o agente Michael Townley (foto), que serviu a CIA estadunidense e a DINA, o organismo de inteligência política da ditadura chilena, criado por Manuel Contreras que adotou como um de seus modelos o SNI brasileiro. Investigação sobre morte de João Goulart acompanha andamento do caso envolvendo o Nobel de Literatura. Por Dario Pignotti.
Brasília - Faltam informações consistentes, até o
momento, para responder de forma categórica a pergunta que dá título a
esta matéria. Há, isso sim, indícios sobre a suposta participação de um
agente da CIA, acusado dos atentados mais impactantes executados pela
Operação Condor, no envenenamento que teria matado o poete Pablo Neruda
doze dias depois do golpe de Estado de Augusto Pinochet, no Chile.
“Estou tomando conhecimento por seu intermédio desta denúncia contra
esse agente norte-americano que trabalhou na CIA (Michael Townley). Isso
é importante para nós, pode ser útil para nossa investigação sobre a
morte do presidente João Goulart, antes de fazer a exumação”, disse
Nadine Borges, assessora da Comissão da Verdade, em conversa com a Carta
Maior.
“Townley esteve envolvido em casos muito conhecidos da
Condor. Se essa denúncia se confirmar, não podemos tirar nenhuma
conclusão apressada, mas seria outro sinal de que membros dessa operação
realmente utilizaram veneno como arma, o que nos traria um novo
elemento para esclarecer o que aconteceu com João Goulart”, acrescentou
Nadine Borges, que assessora “ad honorem” a coordenadora da Comissão da
Verdade, Rosa Cardoso, e é integrante da Comissão da Verdade do Rio de
Janeiro.
É bem conhecido – inclusive há trabalhos
historiográficos a respeito – o apoio do ditador Emilio Garrastazu
Médici ao golpe de Estado de Augusto Pinochet, em 11 de setembro de
1973. O jornal Folha de S.Paulo revelou meses atrás que seu sucessor,
Ernesto Geisel, entregou milhões de dólares à ditadura chilena, na forma
de crédito, para a compra de armas.
No dia 23 de setembro de
1973, doze dias depois da derrubada do presidente Salvador Allende,
morreu o poeta Pablo Neruda, devido a um câncer de próstata, segundo a
versão oficial que começou a ser posta em dúvida oficialmente em abril,
quando a justiça chilena ordenou a abertura do caixão para que seus
restos fossem estudados por vários peritos, inclusive da Cruz Vermelha
Internacional, ante a suspeita de que foi intoxicado.
As
suspeitas de envenenamento ganharam mais força essa semana quando o
ex-chofer de Neruda, Manuel Anaya, declarou à agência italiana ANSA, que
o possível responsável pela intoxicação foi o agente Michael Townley,
que serviu a CIA estadunidense e a DINA, o organismo de inteligência
política da ditadura chilena criado por Manuel Contreras, que adotou
como um de seus modelos o SNI brasileiro, em cuja escola de repressores,
a ESNI, estudaram possivelmente vários chilenos.
Se essa
denúncia contra Townley se confirmar, ocorrerá um giro copernicano na
rede terrorista multinacional Condor, ou pelo menos em um de seus
capítulos ainda pouco explorados, o que trata da eliminação bioquímica
de opositores no Chile e, supostamente, em vários países da região.
Townley foi para a Condor o que Sergio Paranhos Fleury foi para a
repressão no Brasil: um paradigma do serial killer a serviço da guerra
sem fronteiras contra o comunismo real e o imaginado pelos generais
sulamericanos. Foi ele que assassinou em 1975, em Washington, o
ex-chanceler chileno Orlando Letelier, que participou, também em 1975,
do atentado que feriu gravemente o vice-presidente chileno Bernardo
Leighton, em Roma, e que, poucos meses antes, em 1974, executou em
Buenos Aires o general Carlos Prats, exilado após a chegada de Pinochet
ao poder.
A esse recorde terrorista se somaria o até agora não
provado crime contra Pablo Neruda, de acordo com a declaração de seu
assistente Araya, testemunha direta dos fatos. O motorista do automóvel
do Prêmio Nobel de Literatura foi quem o levou até a Clínica Santa
Maria, em Santiago do Chile, para tratar de uma estranha doença pouco
antes de falecer no dia 23 de setembro de 1973.
Ainda que a
verdade ou falsidade sobre a substância fatal que teria matado Neruda só
será conhecida com a conclusão dos exames do cadáver, pode-se assinalar
que a acusação contra Townley goza de verossimilhança dado os
antecedentes criminais mencionados acima (atentados contra Letelier,
Leighton e Prats). Além disso, ele trabalhou durante anos com o
bioquímico Berríos, recrutado pela DINA chilena para desenvolver o
mortífero gás Sarín e outros compostos destinados a eliminar inimigos da
ditadura sem deixas rastros.
No prontuário “químico” de Townley
está a execução com substâncias mortíferas de dois peruanos, que ele
utilizou como cobaias para demonstrar a eficácia dos compostos
elaborados em um laboratório que funcionava em sua casa no bairro Lo
Curro, em Santiago do Chile, e estava subordinado à DINA.
A
informação levantada por jornalistas chilenos indicava que o centro de
experimentação com armas químicas da DINA começou a funcionar em 1975,
ou seja, dois anos depois da morte de Pablo Neruda, um dado a levar em
conta já que reduziria a probabilidade de que o escritor tenha sido
assassinado por agentes do estado.
Mas, assim como a morte de
Pablo Neruda, ocorreu em 1973, antes de ter sido posto em marcha o
Projeto Andrea, e isso pode conspirar contra a ideia de assassinato, há
outro suposto magnicidio que ocorreu anos mais tarde, em 1982, quando
morreu o ex-presidente Eduardo Frei Montalva, que segundo um juiz
chileno foi vítima de um envenenamento durante uma internação
precisamente na Clínica Santa Maria. O provável assassinato de Frei, em
1982, é um antecedente a ser levado em conta, quando se investiga o que
ocorreu com João Goulart e seu estranho falecimento em 1976, que seus
familiares atribuem a um envenenamento por meio da inclusão de fármacos
contaminados junto aos remédios que tomava para uma enfermidade
cardíaca.
Entre Frei e Goulart há semelhanças políticas: ambos
eram, quando morreram, dirigentes políticos centristas com capacidade de
reunir o respaldo de amplos setores, da esquerda à centro-direita,
interessados em formar uma coalizão capaz de encurtar a transição
democrática, que era o que menos queriam Pinochet e Geisel, o que
permite suspeitar que ambos os ditadores tenham consentido ou instigado a
eliminação desses opositores civis.
“Nestas investigações é
preciso se mover com muito cuidado para evitar passos em falso”,
recomenda Nadine Borges durante a entrevista com Carta Maior. Logo
depois de fazer essa advertência, assinala que “diante das dúvidas e das
provas que foram apagadas pelo tempo, nós consideramos que o correto é
não restar nenhuma dúvida e investigar. Por isso acreditamos que é
preciso avançar o que for possível com as investigações sobre o que
ocorreu com Neruda e Goulart, e buscar se há alguns paralelos, que me
parecem podem existir, sem esquecer a informação que já se tem sobre
Frei”.
No plano prático é útil incorporar a experiência acumulada
no Chile, “por isso conversamos com peritos da Cruz Vermelha
Internacional que estiveram como observadores nos trabalhos de abertura
do caixão e primeiras manipulações com o corpo de Pablo Neruda; são
informações importantes para nós que podem ser aplicadas no trabalho de
exumação do presidente Goulart”.
Nadine Borges acompanhou a
doutora Rosa Cardoso e outros membros da Comissão da Verdade ao Rio
Grande do Sul, onde há uma semana receberam os citados especialistas da
Cruz Vermelha junto com peritos da Argentina e do Uruguai,
experimentados em trabalhos com corpos de vítimas das ditaduras dos seus
países.
Para chegar à verdade sobre o passado, assinala Borges,
deve-se trabalhar tanto com as ferramentas técnicas que aportam os
especialistas forenses, como com a reconstrução histórica dos fatos.
“Pode acontecer que o avançado estado de decomposição do corpo do
presidente Goulart nos impeça de encontrar rastros que demonstrem que
foi envenenado, mas mesmo assim vale a pena fazer a exumação porque o
que estamos vendo com as suspeitas sobre Neruda é que o envenenamento
pode ter sido uma arma empregada pela operação Condor em uma escala
maior do que a que imaginávamos. Além disso, há vários elementos que nos
indicam que o ex-presidente Eduardo Frei também morreu por causa de um
envenenamento”.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
[Fonte: www.cartamaior.com.br]
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