![]() |
Gravura de Gustave Doré para o Quixot |
(Escondida, mas não muito, o texto tem uma homenagem a meus pais, ambos dentistas. Uma vez, pedi para que eles pusessem a citação junto a quadro de Doré com a cena, no consultório. Eles gostaram da ideia, porém, por algum motivo, nunca colocaram).
Por Milton Ribeiro
As mortes de Cervantes e Shakespeare teriam ocorrido no mesmo dia e no mesmo ano, em 23 de abril de 1616. A fim de homenagear este dois imensos nomes da literatura de todos os tempos, em 1995, a XXVIII Conferência Geral da UNESCO escolheu o dia 23 de abril como o Dia Internacional do Livro e dos Direitos Autorais. Também era homenageado outro escritor falecido naquela popular data de 1616: o historiador peruano Inca Garcilaso de la Vega, dito o “príncipe dos escritores do novo mundo”.
Porém, a verdade não é bem esta, pois Cervantes morreu em 22 de
abril, sendo sepultado no dia 23, e Shakespeare faleceu em 23 de abril
de 1616, mas segundo o calendário juliano, que corresponde a 3 de maio
no calendário gregoriano — utilizado por nós. Portanto, do ponto de
vista temporal, morreu onze dias depois de Cervantes. O 23 de abril é
bastante frequentado por escritores famosos: William Wordsworth, por
exemplo, grande poeta romântico inglês, também morreu num 23 de abril,
só que 1850.
Deste modo, se formos rigorosos, concluímos que a data da morte de
Cervantes foi um 22 de abril como este domingo e a de Shakespeare um 3
de maio de 1616, apesar da lenda. Só o peruano Garcilaso de la Vega
perdeu a vida na data da Unesco. Até Millôr Fernandes fez confusão,
escrevendo certa vez: “Você sabia que Cervantes morreu no mesmo dia da
morte de William Shakespeare? Evidentemente, como a TV Globo não
existia, os dois morreram sem tomar conhecimento um do outro”. Com Globo
ou sem Globo, o fato é que as mortes não foram no mesmo dia e que o Sul21 homenageia Cervantes no dia correto de sua morte, 22 de abril.
Uma biografia sensacional, ou no mínimo, muito particular
![]() |
Miguel de Cervantes: litogravura de
autor desconhecido |
Na verdade, sua vida foi espetacular. Após um duelo onde feriu seu
oponente, fugiu em 1569 para onde hoje é a Itália, a fim de servir como
soldado. Na Batalha de Lepanto, em 1571, lutando ao lado da Santa Liga
(República de Veneza, Reino de Espanha, Cavaleiros de Malta e Estados
Pontifícios), perdeu os movimentos da mão esquerda ou toda a mão,
segundo outros. Em 1575, participou da expedição contra Túnis. Preso por
um corsário árabe, passou cinco anos na prisão em Argel, junto com um
de seus irmãos. Fugiu 4 vezes, cada fuga com sua história: na primeira
vez é apanhado e posto em um confinamento mais severo. Então, sua
família reúne algum dinheiro para a fiança, mas o dinheiro só é
suficiente para resgatar um dos irmãos e Cervantes prefere dar a
liberdade a Rodrigo. Então, libertado, este contrata uma embarcação para
libertar Cervantes, mas acaba preso novamente. Na terceira tentativa,
Cervantes é encontrado dias depois e acaba fechado 5 meses no banheiro
da cela! Na quarta vez, tenta subornar um mouro para facilitar-lhe a
fuga, mas é delatado. Como pena, o Sultão de Argel o manda para uma
prisão em Constantinopla. Mas, antes da viagem, dois frades espanhóis
organizam uma expedição à África e conseguem, com auxilio da família
Cervantes, pagar seu resgate.
Ainda serviu nas campanhas de 1581 a 1583, na expedição que Filipe
mandou aos Açores, contra o prior do Crato, que pretendia o trono de
Portugal: e é por essa data que dirige galanteios a uma dama portuguesa
22 anos mais jovem e de quem teve sua única filha, D. Isabel de
Saavedra. Só após o nascimento, em 1584, é que desposou legitimamente D.
Catarina de Palácios Salazar y Vosnediano, dama de linhagem fidalga.
De volta à Espanha, escreve cerca de 30 peças de teatro e seu primeiro livro, A Galateia
(1585). Sem êxito e cometendo todos os excessos retóricos que depois
condenou em Dom Quixote, passou a trabalhar como coletor de impostos. Em
1597, é preso por dívidas e tudo indica que foi na prisão que começou
escrever a primeira parte do Quixote.
O Quixote
![]() |
Gravura de Cândido Portinari do Quixote |
(…) D. Quixote perguntou a Sancho por que motivo lhe ocorrera chamar-lhe “Cavaleiro da Triste Figura”, naquela ocasião precisamente.
— Eu lhe digo — respondeu Sancho —, é porque o estive observando à luz da tocha que vai na mão do mal andante cavaleiro, e deveras reconheci em Vossa Mercê a mais má figura que nunca vi; do que deve ter sido causa ou o cansaço deste combate ou talvez a falta dos dentes queixais.
![]() |
Outra gravura de
Doré para os
fantasmas que
habitavam a mente do Quixote
|
O livro, publicado em 1605, fez estrondoso sucesso. Tanto que recebeu
uma continuação apócrifa, assinada por um inexistente Alonso Fernández
de Avellaneda, que demonstra total incompreensão dos personagens
cervantinos e não pode ser comparado com o original. Em 1615, Cervantes
publicou o segundo tomo, onde o falso livro de Quixote é citado no
prólogo.
VALHA-ME DEUS, com quanta vontade deves estar esperando agora, leitor ilustre, ou plebeu, este prólogo, julgando achar nele vinganças, pugnas e vitupérios contra o autor do segundo D. Quixote; quero dizer, contra aquele que dizem que se gerou em Tordesilhas e nasceu em Tarragona. Pois em verdade te digo que te não hei-de dar esse contentamento, que, ainda que os agravos despertam a cólera nos mais humildes peitos, no meu há-de ter exceção esta regra. Quererias que eu lhe chamasse asno, atrevido e mentecapto; mas tal me não passa pelo pensamento…
Se o primeiro volume já era extraordinário, a continuação é ainda
melhor e, ao final deste livro, o autor mata o Quixote para que seja
evitada nova continuação.
Cervantes é o fundador do romance moderno. No Quixote há personagens
representando ideias e as situações falam por si, sem a necessidade de
maiores explicações do autor. Atualmente, talvez o livro soe verboso e
com longos trechos desnecessários, mas ainda não foi inventado símbolo
melhor do espírito idealista e aventureiro do ser humano.
![]() |
O Dom Quixote de Picasso |
(Também é genial seu livro de 1613, Novelas exemplares,
conjunto de doze narrativas breves de caráter didático e moral que podem
servir de introdução ao mundo cervantino. Cervantes se ufanava, no
prólogo, de ter sido o primeiro a escrever, em castelhano, novelas ao
estilo italiano:
A isto se aplicou meu engenho, por aqui me leva minha inclinação, e mais que dou a entender, e é assim que sou o primeiro que novelei em língua castelhana, que as muitas novelas que nela andam impressas, todas são traduzidas de línguas estrangeiras, e estas são minhas próprias, não imitadas nem furtadas; meu gênio as engendrou, e pariu-as minha pena, e vão crescendo aos braços da imprensa.
Elas são habitualmente agrupadas em duas séries: as de caráter idealista e as de caráter realista.)
Como dissemos, o êxito de Dom Quixote, apenas apareceu, foi colossal.
A glória e a fama que Cervantes obteve em vida foi imensa para a época.
No primeiro ano esgotaram-se quatro edições. O pequeno mundo literário
espanhol estava em êxtase. Todos queriam conhecer Cervantes, todos o
felicitavam: o conde de Lemos proclamava-se, orgulhoso, seu amigo e
mecenas. Os estrangeiros, como os franceses que vieram na comitiva do
embaixador de França à corte de Espanha para tratar das núpcias do
príncipe francês com a infanta espanhola, solicitaram, como graça
excepcional, o favor de serem apresentados a ele. Era a glória, aquela
que ele procurara nos acampamentos e nos teatros.
Cervantes reformou o gosto do público que, após o Quixote, nunca mais
foi o mesmo. Ele fez ruir um mundo numa risada colossal. E um novo caos
surgiu.
Abaixo, a versão de Dom Quixote para apressadinhos, publicada no blog Ler antes de morrer:
Sem comentários:
Enviar um comentário