O arquiteto dos edifícios de complexas formas geométricas e sofisticadas, que espantou o mundo com o Museu Judaico de Berlim, esteve em Lisboa - onde vai projetar o museu judaico - para falar de cidades e museus enquanto espaços de memória
Daniel Libeskind - Getty ImagesEscrito por Ana Soromenho
Daniel Libeskind, o arquiteto dos grandes edifícios de complexas formas geométricas e sofisticadas, dos ângulos majestosos e das formas desencontrados e labirínticas, dos espaços fragmentados que formam vazios entre luz e sombra, sobretudo o arquiteto que espantou o mundo com a primeira obra que realizou, o Museu Judaico de Berlim, inaugurado em 2001 e, desde então, um dos museus mais visitados daquela cidade, esteve em Lisboa para falar de museus enquanto espaços de cultura e memória.
Este encontro, que juntou jornalistas, arquitetos e agentes culturais, teve lugar no atelier de Arquitetura Saraiva & Associados, parceiro de Libeskind no projeto do futuro Tikvá Museu Judaico de Lisboa, que será erguido que na Avenida da Índia, em Belém. Tikvá, significa “esperança” e esperança e luminosidade são também duas palavras caras ao arquiteto norte-americano, de origem polaca, que habita em Berlim, e construiu em várias cidades da Europa e dos Estados Unidos uma obra de grande impacto social, cultural e político centradas nos museus de memória. Entre elas, contam-se o Imperial War Museum de Manchester, em Inglaterra, o Museu de História Militar de Dresden, na Alemanha, ou a Memory Foundatins, em Manhattan, o projeto que reconverteu o Groud Zero, depois da destruição do ataque terrorista do 11 de setembro.
O projeto de reconversão do Ground Zero, em Nova Iorque, foi assinado por Daniel Libeskind. Hufton And Crow |
MEMÓRIA E IMATERIALIDADE
“A origem etimológica da palavra museu vem do grego e quer dizer musa. Na mitologia grega, as musas eram filhas de Zeus e de Mnemosine, a deusa da memória”, contou ele, referindo que memória é também a base para a fundação da arquitetura, enquanto espaço de vivência sustentável e memorável. “Tive a sorte de trabalhar em lugares e espaços únicos. É um enorme privilégio ter tido a oportunidade de construir o meu trabalho para museus e cidades desta forma”, referiu. “Não creio que tenha sido acidental. Somos quem somos a partir do lugar onde nascemos. Eu nasci num abrigo. Os meus pais são sobreviventes do Holocausto. Chegaram dos campos de concentração e não tinham um sítio para morar. Creio que esta experiência me qualificou para poder pensar nestes assuntos.”
“Contra o horror e o apocalipse, o desafio é conseguirmos transformar em algo de belo e atraente e proporcionar um lugar onde as pessoas queiram estar”
Sobre o processo que envolve projetar e construir obras tão complexas como as que tem feito, Daniel Libenskin mencionou a ideia de paz e beleza. “Contra o horror e o apocalipse, o desafio é conseguirmos transformar em algo de belo e atraente e proporcionar um lugar onde as pessoas queiram estar.” Para ele essa é a função do espaço-museu e é por isso a arquitetura nos deve trazer alegria e espanto.
E como é que se constroem espaços visitáveis e aprazíveis sobre memórias devastadoras como o Holocausto ou a destruição? “Nada do que é físico é imortal. O que é imortal é o espírito que permanece”, referiu. “É difícil falar de memórias. Não é algo que se possa fazer num computador. Podemos perguntar ao Google o que é a memória e obter uma resposta qualquer. A verdade é que a memória humana constrói-se de uma forma muito complexa. Pensamos quem somos e também não sabemos quem somos. Quando crio um museu, ou um espaço público, penso como é que alguém se vai sentir quando entra num determinado edifício. Geralmente penso nas crianças. As crianças são os meus maiores apoiantes. Têm opiniões muitos fortes e dizem-me sempre, faz mais disto, não é suficiente este ângulo, faz um ângulo maior, faz mais estranho. O que gostaria de que as pessoas sentissem quando entram num espaço projetado por mim, sintam que tudo é possível.” E ainda sobre a memória dos espaços. rematou: “A memória cultural não é sobre narrativas, fotografias ou arqueologia. É muito mais do que isso porque é um processo imaterial. É sobre entrar num museu, sentirmo-nos num lugar onde nunca estivemos nem nunca conhecemos e sentirmos uma vibração estranha. Como um fantasma. Para se conseguir transportar esta sensação para a arquitetura qualquer método é bom.”
CIDADES DEVASTADAS
Como se vive com a destruição de um país, de um lugar que foi nosso e que foi totalmente arrasado? Como é que os habitantes podem sobreviver, por exemplo, as imagens que diariamente nos mostram das cidades arrasadas da Ucrânia? E perante esta questão o arquiteto respondeu: “Como lidamos com os escombros de uma cidade destruída é uma grande questão. As cidades são os lugares da criatividade humana. As pessoas querem estar nas cidades. Ninguém acredita que depois da guerra surge uma bela cidade. Mas surge. Cresci na Polónia. Varsóvia era uma cidade linda e ficou reduzida a nada. Depois o centro da cidade foi reconstruído a partir das vistas panorâmicas da cidade que o artista veneziano do século XVIII Bernardo Belloto tinha pintado. Este ‘statement’ de tentar reconstruir a cidade tal como ela era, é muito bonito. Uma cidade não se baseia naquilo que é físico, no que está no solo. É também tudo o que não podemos tocar. É por isso que as pessoas não desistem e regressam às cidades destruídas. Existe um grupo de artistas, de arquitetos, de intelectuais de escritores ucranianos, que já começaram a fazer um trabalho de recordar todos os lugares que perderam, para tentar salvar memória das cinzas a destruição.”
“Um projeto cultural é sempre uma viagem e um processo onde surgem muitos obstáculos. Transformar esses obstáculos em oportunidades é o desafio”
LISBOA E DESENHO
Sobre o projeto para o museu de Lisboa, Libeskind levantou algumas pontas do véu: “Dei aulas de história em muitas instituições e não sabia nada sobre os judeus em Portugal. Toda a história foi engolida pela história da inquisição espanhola. Quando tive conhecimento de algumas das coisas que aqui aconteceram fiquei estupefacto. Mas um projeto cultural é sempre uma viagem e um processo onde surgem muitos obstáculos. Transformar esses obstáculos em oportunidades é o desafio. E o maior desafio é como é que um projeto pode responde as circunstâncias e aos obstáculos sem perder identidade.” E então citou Brunelleschi, o arquiteto e escultor florentino renascentista: “Tenta fazer sempre qualquer coisa que seja extraordinária.”
Para que isso aconteça é preciso desenhar, tomar decisões, mergulhar na história, desconstruir. Sobretudo desenhar. Daniel Libeskin começou por estudar música, foi um músico virtuoso, mas decidiu mudar de pauta e em 1970 o seu diploma de arquitetura da Cooper Union. Só depois fez a sua pós-graduação em História e Teoria da Arquitetura na School of Comparative Studies da Essex University e começou a projetar.
No centro do seu pensamento está o desenho. É a partir deste gesto que tudo se faz. “Tentei trabalhar para arquitetos famosos, alguns deles prémios Prizker, e passados poucos dias, apesar de ser bem pago, desistia. Pensava: ‘Isto não é para mim tem de ser de outra maneira e se tiver sorte alguma coisa vai acontecer’. O meu método foi perseguir o desenho de arquitetura, foi esta a minha porta. Acredito que a porta secreta para chegar onde queremos chegar na arquitetura, é conhecer bem o desenho dos mestres da renascença, dos gregos, dos barrocos. Desenhá-los e ir desenhando. Heidegger, o filósofo nazi, dizia que a linguagem original é gráfica. Portanto a meu conselho para os jovens arquitetos é: persigam desenho. É a partir daqui que tudo acontece e surge a identidade.”
[Fonte: www.expresso.pt]
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