Fogem da violência, da crise política e social, de um futuro que parece impossível. Cada vez mais brasileiros cruzam o oceano e criam raízes em Portugal. As motivações, a dor de dizer adeus, os desafios e os possíveis tropeções de uma vida de imigrante
A
decisão veio empurrada por um país à beira do precipício. Por causa
dele, ou apesar dele. O desejo de cruzar fronteiras estava até inscrito
numa espécie de lista mental de ambições a cumprir um dia — mas talvez
não ganhasse vida tão cedo sem esse Brasil em colapso político,
económico, social. Mergulhado num vazio de futuro. “A crise maior é a
desesperança. A gente não tem esperança numa recuperação a médio prazo”,
diz Paula Oliveira, tom de voz entristecido. “O que se ouve é: não vou
viver tempo suficiente para ver o Brasil recuperar”, conta numa conversa
telefónica, a manhã ainda há pouco saída da madrugada no lado de lá do
Oceano Atlântico e já ensolarada em território luso. Se tudo correr como
Paula e o marido Rafael Lima Joia anseiam, o casal e a filha Beatriz,
de três anos, vão integrar, no primeiro trimestre do próximo ano, as
estatísticas de brasileiros a abandonar o país. E a escolher Portugal como nova casa..
A
imigração brasileira não é tema novo. Desde os anos 80 que a travessia
acontece tendo Portugal como destino, com maior ou menor fluxo. Numa
linha de tempo mais recente, viu-se a crise portuguesa a fazer
brasileiros regressar ao seu país, primeiro, e a crise brasileira a
fazê-los sair de novo, depois. Em 2017, eram 85.426 os que por cá tinham
morada, fazendo dos “canarinhos” a maior comunidade estrangeira
residente em Portugal. Os números são do Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo, do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), e falam de um crescimento de 5,1% em relação a 2016. Em Lisboa e no Porto, são já os brasileiros quem domina o mercado de compra de casa por estrangeiros (representam 19% do total de compras a nível nacional, segundo dados
de 2017 da Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação
Imobiliária de Portugal). “Chegamos a uma fase da vida em que queremos
ter mais segurança e qualidade de vida. E achamos que Portugal nos dará
isso”, diz Rafael, a sublinhar o sobrenome Lima, prova da ligação
genética a Portugal.
Estava o ano passado a dobrar e Júlio Morais
aterrava em Lisboa. Desta vez para ficar. Tinha feito a mesma viagem por
duas vezes na pele de turista e sentido desde o primeiro momento que
aquela podia ser a sua casa. Há cerca de ano e meio, a ideia começou a
invadir “mais fortemente” a sua cabeça: “Comecei a procurar um jeito de
viabilizar a minha saída do Brasil.” Motivação maior: fuga da violência.
“Já não podia sair de casa tranquilo. Sempre que saía, mesmo de carro,
vivia olhando à minha volta, de portas trancadas. À noite, era já
impensável.” Músico, cantor e compositor natural de Recife, Júlio Morais
sabia não estar a dar o passo mais prudente do ponto de vista
profissional: “Portugal não é óbvio para ganhar dinheiro. O Canadá, por
exemplo, seria melhor.” Mas o resto pesava mais.
O resto era a língua partilhada, a cultura semelhante, um clima que
lhe soava amigável. Acesso mais fácil à educação e à saúde. E a
possibilidade de viver sem medo.
“É impagável essa sensação”,
atesta a pernambucana Yone da Fonte, em Portugal há menos de um ano, ao
tentar relatar o mesmo sentimento e rendida à falta de palavras capazes
de o explicar: “Não sei descrever a sensação de poder andar na rua
tranquila, sem medo.”
Números não pararam de crescer
Pedro Góis, sociólogo e
investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra,
anda há vários anos a estudar as relações entre os dois países. Desde
2009, altura em que publicou um trabalho focado nas características
desta imigração, o investigador tem notado alterações no perfil de quem
vem para Portugal. Até esse ano, os imigrantes eram sobretudo ligados ao
mercado de trabalho — “os muito qualificados, que desde os anos 80, com
a chegada dos dentistas, foram chegando e alterando as profissões; e os
menos qualificados, que vinham sobretudo para a construção civil,
limpezas, trabalho no shopping”. Com a crise lusa a ganhar
dimensão, houve um regresso a casa dessas pessoas. E agora que Portugal
ganhou fôlego e o Brasil vive sem ele, essa “migração laboral voltou”.
Mas
não exactamente igual. Aos perfis já falados, Pedro Góis junta mais
dois: os estudantes, um “grupo que está a crescer muito” (dados
governamentais apontam para 13.785 alunos inscritos), e os “estrangeiros
residentes, que mudam a sua vida por razões económicas” (e onde se
incluem os chamados vistos gold).
Além
disso, sublinha Pedro Góis, é preciso ter em atenção que os números do
SEF pecam sempre por defeito, uma vez que as pessoas podem ficar no país
até 180 dias sem iniciar o seu processo de legalização. “Pode haver
gente a chegar agora que só entra nos números totais daqui a uns
tempos”, explica. E o que é previsível que se veja nessas estatísticas
no futuro? “A tendência não será apenas para aumentar mas para acelerar
bastante o número de pessoas que vêm.” É que à medida que a “rede
migratória” se vai formando do lado de Portugal, os “riscos” para quem
vem decrescem. E, acrescenta o sociólogo, “os salários no Brasil estão
muito baixos e a vida não está muito barata”.
Foi essa intenção de debandada que detectou um estudo recente da Datafolha, instituto de pesquisa ligado ao jornal Folha de São Paulo.
Quase metade (43%) da população adulta dizia ter vontade de sair do
país. E se o olhar se fixava em faixas etárias mais baixas (16 a 24
anos) essa percentagem subia para 62%. Ainda que o destino preferido dos
brasileiros para emigrar continue a ser os Estados Unidos, mostra o
estudo, os pedidos de cidadania portuguesa são cada vez mais — assim
como o número de vistos para empreendedores, reformados e estudantes.
"A minha vontade é ficar"
Yone
da Fonte conseguiu o visto graças à academia, em outubro de 2017.
Jornalista formada em 2003, tinha no Recife um emprego estável como
repórter num canal de televisão. Mas há muito acumulava uma vontade de
fazer uma pausa no trabalho para estudar. “Juntando a crise com questões
pessoais pensei que talvez fosse hora de emigrar”, contou. Cogitou o
Canadá, os EUA, a Irlanda. Mas um dia, numa feira na sua cidade, viu
anúncios de um mestrado em Tecnologias de Informação, Comunicação e
Multimédia em Portugal e começou a fazer planos. “Despedi-me, vendi o
carro, a casa, matei o dinheiro que tinha. E vim.” Yone sorri ao
perceber a narrativa aparentemente imprudente para logo de seguida dar
provas de que o risco valeu a pena: “Vim para fazer o mestrado e
regressar ao Brasil depois. Mas me surpreendi muito com o quanto gostei
de cá estar. A minha vontade é ficar.”
Desta vez, porém, o risco será mais moderado. “Tudo depende do
mercado de trabalho”, diz: “Se conseguir emprego fico.” Por estes dias,
Yone anda a percorrer o país de norte a sul com os pais. E agora,
apaixonados por Portugal e encorajados pela viagem da filha, até eles
ponderam uma mudança de país.
Foi essa influência que caiu também
sob a actriz Juliana Montenegro. Depois do encanto relatado pelo
namorado Júlio Morais, também ela quis fazer as malas e trocou o nordeste do Brasil por Lisboa há cerca de um mês. “Como 99% dos
brasileiros, para não dizer todos, estávamos insatisfeitos com o nosso
país. É uma coisa antiga, mas depois do impeachment [de Dilma Rousseff] tudo piorou. E por incrível que pareça, continua piorando”, justifica Júlio.
Que Brasil é esse, afinal, e o que se está vivendo agora que não acontecia antes?
Eliane
Brum, jornalista, escritora e documentarista brasileira, anda há cerca
de três décadas a calcorrear o país em busca das histórias por detrás da
fachada. E o que ela nunca vê é um Brasil conjugado no singular: “São
Brasis, muito diferentes entre si.” E alguns deles “com uma imensa força
criadora”. Ainda que muitas vezes se vejam esmagados por esse “Brasil
que detém o poder económico e político” que não só ignora os “Brasis
mais originais” — como aquele que ela conheceu na Amazónia, onde faz
trabalhos nos últimos 20 anos e onde vive actualmente — como,
“aceleradamente, os destrói”. É uma crise climática e da democracia, diz
Eliane Brum, ampliada por um “profundo desencanto”. Mas nessa renúncia ao país de sotaque açucarado cabe também o diagnóstico de uma geração.
Desistir não está nos planos de Rafael Lima Joia e Paula Oliveira.
Querem sair por agora, mas a ideia de não olhar para trás não está
programada. No Rio de Janeiro, vivem num T2, 70 metros quadrados,
condomínio fechado. A filha Beatriz — cujo nascimento foi também “muito
motivador” para a decisão de emigrarem — anda numa escolinha privada. É
lá que encontram a garantia de qualidade. Tal como na saúde. “Não é
negado atendimento a ninguém nos hospitais públicos, mas muitas vezes
não existe um atendimento adequado”. Palavra de Paula Oliveira, médica
especialista em Cardiologia, neste momento a tentar obter um
reconhecimento do diploma para poder trabalhar em Portugal. “O número de
funcionários é baixo, os meios são insuficientes. Há hospitais
públicos, mas actuam de forma precária”.
"Problemas crónicos"
A auscultação ao país tem detectado fraquezas. Mas para Paula
Oliveira são “problemas crónicos que se perpetuam na história do país”.
Rafael Lima Joia fala de um fosso social histórico, mas agora ampliado.
“Há quatro anos, com a Copa e depois as Olimpíadas, houve um excesso de
expectativas e gastos públicos”, diz, dando o exemplo do investimento
feito no estádio do Maracanã (cujo nome oficial é Estádio Jornalista
Mário Filho) em oposição ao abandono da favela da Mangueira, mesmo ao
lado. “Investiu-se achando que isso seria a salvação do Brasil. E não
aconteceu”.
Filho de pai português, Marcelo Migowski viu muitos
brasileiros a chegar a Portugal que, “por desconhecimento — sobretudo de
legislação e de funcionamento dos órgãos públicos portugueses —,
deixaram de atentar para várias coisas que comprometeram a vida deles no
país”. Por causa disso, decidiu atirar-se à escrita de um livro que
ajudasse a evitar fracassos como o de “gente formada em áreas como
engenharia e informática que, em Portugal, trabalhava em lojas porque
não sabia que era preciso um reconhecimento do diploma”. Chama-se Destino... Portugal, sonho ou realidade? e
procura orientar quem quer emigrar, respondendo a questões como os
vistos, a aquisição de nacionalidade portuguesa, o arrendamento e compra
de casa, emprego, envio de dinheiro para o exterior, abertura de conta,
transferência de contribuições para a segurança social para a reforma,
validação de diplomas, matrículas em escolas, entre outros.
“Uma grande quantidade de pessoas emigra sem estar preparada. Isso
ainda acontece”, aponta Migowski, para logo de seguida dar conta do
bê-á-bá para não haver deslizes: “planeamento, consciência do que se vai
buscar, tendo bem definido o que se quer fazer, documentação e uma
reserva financeira”, aconselha.
Ainda há pouco tempo Pedro Góis
esteve no Brasil a dar seguimento a um estudo encomendado pela
Organização Internacional das Migrações, onde se procura perceber a
imigração brasileira que corre mal. E sim: “Há um número importante de
imigrantes para quem a experiência corre mal”. O projecto integrado pelo
sociólogo, com apoio do Estado português e da União Europeia, ajuda
aqueles que “já não têm outra possibilidade que não regressar ao Brasil,
mas não têm sequer condições económicas para pagar a viagem de
regresso”. E nos últimos dez anos foram cerca de duas mil as pessoas
nesta situação. Portugal como o novo el dorado da emigração
brasileira, como tem sido nomeado em alguma imprensa brasileira, não é
certamente uma realidade, sublinha Pedro Góis: “E devemos tentar não
vender essa ideia”.
[Fonte: www.publico.pt]
[Fonte: www.publico.pt]
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