Importado como o jogo, o vocabulário boleiro também tem lances de gênio
Torcedor com o rosto pintado com as bandeiras de Inglaterra e Colômbia. |
Nos meus tempos de garoto peladeiro, chamávamos escanteio de córner e
zagueiro de beque. O Brasil já era tricampeão mundial, seu futebol
consolidado no imaginário do planeta como uma escola original, mas no
campo da linguagem o processo de abrasileiramento do jogo não tinha se completado. A realidade vai na frente das palavras.
O córner e o beque —formas aportuguesadas de 'corner' e 'back',
termos do vocabulário inglês que acompanhava o esporte desde o
berço— não desapareceram por completo de nossa paisagem futebolística,
mas perderam espaço. Hoje carregam por aí aquela aura antiguinha e meio
cômica que na minha infância rodeava uma palavra como quíper (de
"keeper", forma abreviada de "goalkeeper", goleiro).
O melhor do processo de amadurecimento do vocabulário do futebol no Brasil é
que ele se deu de forma, digamos, natural, e não como resultado de um
projeto linguístico nacionalista —que de resto dificilmente teria dado
certo, como não deu certo a tentativa purista de chamar o futebol de
balípodo ou ludopédio.
Prova da natureza espontânea do processo é o fato de soluções
variadas conviverem em campo. Hoje datados, o quíper, o córner e o beque
não levaram com eles em sua decadência outros vocábulos da mesma
estirpe. A tradição de importar palavras e adaptar sua grafia a tapa se
mantém viva no futebol ("football", como até as traves sabem), no craque
("crack", no original um adjetivo empregado como gíria esportiva para
significar "excelente") e no pênalti ("penalty", penalidade).
História bem diferente tem a palavra zagueiro, que tomamos de
empréstimo ao espanhol, provavelmente tocados pela inspiração bélica que
costuma rondar o futebol e que nos deu o artilheiro e sua hipérbole, o
matador: "zaga", do árabe "saqa", é a parte traseira de qualquer coisa,
mas sobretudo a retaguarda da tropa.
Nem tudo é importado. A bela palavra escanteio brotou como um
neologismo de laboratório, forjado a partir de canto, tradução literal
de "corner". À primeira vista poderia parecer um daqueles vocábulos
fadados ao fracasso, como balípodo. A diferença é que pegou.
Há soluções que tangenciam o gênio, como o uso da palavra falta para
traduzir "foul" (jogo sujo, violação das regras), um caso em que a
liderança do processo foi assumida pela similaridade sonora, fortuita,
pois etimologicamente não há parentesco algum entre as palavras.
Acontece que o sentido, vindo atrás, acabou por funcionar também: uma
das acepções clássicas de falta é a de ofensa, pecado.
O caso de gol, minha palavra boleira preferida, é de todos o que mais
endurece o jogo com a língua. Numa leitura superficial parece que o gol
é só mais uma importação simples e desencanada (de "goal", meta), como
as que nos deu o craque e o futebol. Engano: gol é uma anomalia
gramatical do português brasileiro —não do lusitano, que resolveu o
problema antes que ele se manifestasse, transformando a palavra em
"golo".
Mas qual é o problema? Na verdade são dois: desencontro de grafia com
pronúncia e plural maluco. Por reproduzir um som estrangeirado ("gou"),
nosso gol bate de frente com o espírito da língua, que sempre vai
tascar uma vogal bem aberta em sol, anzol, bemol, espanhol etc. E o
plural gols, também anglófono na alma, não tem paralelo em português.
Os sábios chamam isso de barbarismo e recomendam o uso —gloriosamente
ausente da língua real— do plural "gois" ou mesmo "goles". O que é
engraçado. Como sabe qualquer torcedor, o melhor papel dos goles no
futebol é ajudar na comemoração dos gols.
[Foto: Alexander Nemenov/AFP - fonte: www.folha.com.br]
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