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"Cena de Interior II", de Adriana Varejão
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Escrito por Sérgio
Rodrigues
São muitos os temas de discussão levantados pelo cancelamento da
exposição de arte "queer" em Porto Alegre, que tem monopolizado os
quebra-paus virtuais. Trato aqui de apenas um deles: o reacionarismo estético
que marca este início de século.
Embora
o protagonismo do MBL no episódio possa sugerir que a falta de noção sobre o
que é arte se limita à ala mais tosca da direita, não temos tanta sorte. Grande
parte do filistinismo destes tempos emana da esquerda.
Vai
ficando cada vez mais incorporada ao senso comum a ideia de que toda
representação artística deve ser lida ao pé da letra como depoimento cândido,
documento de interesse sociológico ou, pior, propaganda.
Junto
com isso vem um buquê de noções antilibertárias e antiartísticas: a condenação
censória de tudo que "ofenda" alguém, o "lugar de fala"
como uma cela a aprisionar todo artista, a "apropriação cultural" que
segrega influências, etc.
Todas
essas linhas de força convergem para um ataque supraideológico à liberdade de
expressão, e não só a dos artistas. Mas não precisamos ir tão longe na
filosofia.
Para
a brevidade desta coluna basta anotar que o ambiente asfixiante do
reacionarismo estético condena qualquer sopro de ficção, poesia, ironia e
distanciamento crítico a ser um suspiro de moribundo. Não há arte que possa
vingar assim.
Um
bom exemplo é "Cena de Interior II", quadro em que Adriana Varejão,
artista séria, recorre à estética da arte erótica japonesa para representar
cenas formativas de certa sexualidade brasileira de raízes rurais e
escravagistas. Na cartilha tatibitate do reacionarismo, virou "apologia da
zoofilia".
O
vício é generalizado. Se um personagem de filme fuma um baseado, dirige depois
de encher a cara ou xinga o pastor de ladrão, o reacionarismo estético vê nisso
apologia das drogas, da direção irresponsável e da intolerância religiosa.
Não
faz diferença que as cenas possam ser representações realistas da vida e nesse
sentido funcionar –ou não, aí é que está– dentro de uma construção dramática.
Em vez de julgá-las pelo modo como se encaixam no quadro simbólico da obra, o
reacionarismo as toma pelo valor de face.
Rebaixado
tão drasticamente o horizonte intelectual, tudo vira "incentivo". A personagem
adolescente de um romance faz sexo grupal e engravida? Pouco importa que pague
um preço alto em infelicidade, está incentivando o sexo precoce e promíscuo em
jovens leitoras indefesas. Se for negra, esquece-se o incentivo, mas aí estamos
diante de uma odiosa caracterização racista.
O
reacionarismo estético é inimigo das sutilezas e ambiguidades que caracterizam
a arte. Tudo deve ser chapado e traduzível num slogan. Também odeia o
específico, o contingente, a exceção. Apareceu na obra, virou mandamento
universal.
O
fenômeno não é novo nem exclusivo do Brasil. Quem ler os autos do processo
movido contra o romance "Madame Bovary", do francês Gustave Flaubert,
verá que já estava quase tudo lá.
Só
que aquele era o século 19. O ressurgimento do reacionarismo estético como
problema da cultura ocidental no século 21 é preocupante. O Brasil nem
precisaria acrescentar ao pacote suas grotescas deficiências educacionais para
se ver em apuros.
[Foto: Vicente de Mello - fonte: www.folha.com.br]
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