quarta-feira, 7 de junho de 2017

UFRGS torna o disco ‘Elis & Tom’ obra obrigatória para o vestibular


O objetivo é estimular vestibulandos a olharem de forma ampla para a realidade brasileira; ‘Tropicália’ já havia sido indicado nos últimos três anos

Elis Regina e Tom Jobim em 1974

Escrito por Helô D'Angelo

A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que tem um dos vestibulares mais concorridos do país, tem adotado uma noção ampla de literatura em suas provas. Junto com 11 livros, que incluem autores como Machado de Assis e Carolina de Jesus, a comissão responsável pela seleção das leituras obrigatórias escolheu um disco: Elis & Tom, gravado em 1974.
A seleção de um álbum não é novidade. Nos últimos três anos, a prova tem abordado Tropicália: ou Panis et Circencis, de Caetano Veloso – a primeira obra musical a ser selecionada por um vestibular brasileiro. Mas, para os professores que pensaram a prova, a permanência da música como fator literário foi uma conquista: “Confirmamos um conceito maior de literatura: aquele que não obedece um rigor de ter que ser palavra escrita em um livro”, diz Marcia Ivana de Lima e Silva, professora do Instituto de Letras da UFRGS e integrante da comissão de seleção do vestibular.
O disco foi escolhido por cerca de quinze professores do departamento de Letras da própria universidade que, juntos, compõem a Comissão Permanente de Seleção. Segundo Silva, foram semanas de debates sobre qual obra deveria substituir Tropicália como o segundo disco a ser abordado na prova: “Era uma responsabilidade grande, porque recebemos algo em torno de 40 mil vestibulandos a cada ano”.
O vestibular da UFRGS preza pela leitura não só da obra de determinado autor, mas também de toda a sua trajetória e do contexto em que viveu e produziu: “Como um disco é, também, uma reunião de poesia, fica mais interessante para os vestibulandos analisarem a relação entre os textos”, diz Silva.
Para a professora, em um momento em que o consumo de música tem sido feito de forma unitária, por meio de downloads ou serviços de streaming, estudar um disco inteiro e encará-lo como uma obra completa pode ser um desafio grande, “além de ser prazeroso, e de o aluno ter a possibilidade de passar a gostar daquilo”.
Capa do disco ‘Elis & Tom’, de 1974 
O fato de os estudantes reconhecerem, em Elis & Tom, referências das canções contemporâneas que escutam e consomem também motiva a comissão a continuar explorando a música como literatura: “Os jovens ouvem Tropicália e percebem que aquilo tem algo em comum com o que ouvem no dia a dia. Eles notam as inspirações atuais nos nomes clássicos da música brasileira”. Nesse sentido, a escolha de Elis & Tom é importante por seu um disco fundamental para se pensar a canção brasileira: “Elis é a grande intérprete da nossa música, e Tom Jobim, um músico que extrapolou as fronteiras da canção”, resume Silva.
Gravado em um contexto de forte repressão cultural, em plena ditadura militar, Elis & Tom também traz para os vestibulandos a reflexão sobre a nossa época e a atual situação política, e pode levantar questões relacionadas à história do Brasil: “Ainda que não haja uma ditadura posta hoje em dia, os jovens podem fazer ligações entre a censura dos anos 1970 e os atos violentos atuais, por exemplo. Podem entender o que é não ter liberdade e como lutar contra isso usando arte”, reflete a professora.
O vestibular da UFRGS se destaca também pela escolha de autores vivos que ainda não passaram pelo “crivo histórico da passagem do tempo”, nas palavras da professora. São eles: Valter Hugo Mãe, com A máquina de fazer espanhóis; Michel Laub, com Diário da Queda; e Carolina Maria de Jesus, com Quarto de Despejo – todos escolhidos, segundo Silva, depois que a canção passou a ser compreendida como literatura pela comissão: “A partir da escolha do Tropicália, decidimos ousar mais e expandir inclusive o que entendemos como autores”.
De acordo com a professora, o objetivo de criar uma literatura menos rígida, menos branca e mais contemporânea é encorajar os alunos a olharem de forma ampla para a realidade brasileira. “Fazer isso pelo viés da arte acaba impossibilitando que se veja o mundo por um único ponto de vista. E é isso que uma prova para a entrada na universidade deveria sempre provocar”, diz a professora.


[Foto: Fernando Duarte - fonte: revistacult.uol.com.br]

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