Norueguês exibe o valor de sua prosa
hipnótica em livro
Escrito por UBIRATAN BRASIL
O
norueguês Jon Fosse é constantemente lembrado como virtual vencedor do prêmio
Nobel de literatura - poeta e ficcionista, o escritor de 56 anos é hábil em
descrever cenas desprovidas de ação, em que a conjugação dos verbos parece ser
a única pista para distinguir passado e presente. Também dramaturgo, Fosse é um
dos autores mais encenados na Europa, graças a peças em que, muitas vezes, os
diálogos são rarefeitos e marcam a repetição incessante de ideias.
No Brasil, Fosse já teve diversos espetáculos montados, como
Noturnos, Sonho de Outono, Alguém Vai Vir, Um Dia No Verão, O Nome. Agora, é a
vez da literatura, com o romance Melancolia (Tordesilhas). Aqui, ele parte de
um personagem real, o pintor Lars Hertervig (1830-1902), para oferecer um
instigante retrato da mente perturbada de um artista.
De origem
pobre e vivendo no interior da Noruega, Hertervig é logo descoberto por um
mecenas como um pintor de talento, o que lhe garante a chance de estudar
belas-artes na Alemanha. O que seria um tranquilo caminho de sucesso se
transforma em um trajeto tortuoso, graças às terríveis inseguranças e delírios
incapacitantes do jovem artista.
'Um Dia no Verão'. Peça foi encenada por Renata Sorrah.
Com uma prosa detalhada nas minúcias,
Fosse descreve um dia da crise de Hertervig e como isso vai repercutir na sua
vida e na de sua irmã. Sobre o assunto, Fosse respondeu, por e-mail, às
seguintes perguntas.
O senhor acha que o
ódio é uma espécie de motor que impulsiona a literatura? Quero dizer, o mal é
um aliado da literatura?
Para mim, a literatura existe quando
um conteúdo e uma forma criam um universo único, governado pelas próprias leis.
Quando isso ocorre, conteúdo e forma se tornam inseparáveis, como alma e corpo
no ser humano. Se você pensa em uma alma sem um corpo, um fantasma, parece
estranho, ou então um corpo sem alma, um cadáver. O mesmo ocorre com a
literatura. Para mim, esta unidade, este universo, se expressa com uma voz
silenciosa, uma voz que poderíamos chamar de alma da literatura. Para a
literatura existir, você precisa usar tudo o que existe como conteúdo e forma
e, ao mesmo tempo, transformar tudo em uma unidade com uma força
transcendental. O bom e o mal são conceitos; a literatura não é feita de
conceitos, ela dá forma à experiência, à vida. Atos que são certamente
maléficos pertencem à literatura, como também atos de amor.
Com seus silêncios
pesados e um diálogo fragmentado, algumas das suas obras lembram tanto Samuel
Beckett como Harold Pinter. O senhor também vê tais similaridades?
Beckett é mais ou menos meu pai
literário, juntamente com o escritor norueguês Tarjei Vesaas. E, como é
frequente, você se rebela contra seu pai. Minha primeira obra se chamou Alguém
Vai Vir, uma espécie de polêmica contra Esperando Godot, naturalmente. O fato
de Beckett estar tão próximo tem algumas similaridades também em termos de
experiência e personalidade. Mas, para ser honesto, não acho absolutamente que
é um problema. Para mim, a literatura tem uma força transcendental, de certa
maneira é vista como uma espécie de reconciliação, de paz. Minhas pausas e as
pausas de Beckett são muito diferentes, minhas pausas com frequência dizem o
oposto. Pinter nunca foi uma influência, uma vez que nunca li ou assisti a
qualquer das suas peças quando comecei a escrever para o teatro. Mas hoje sim -
suas peças sempre estão repletas de surpresa, medo, as minhas quase nunca. Mas
Pinter sofreu influência de Beckett, sem dúvida, como também foi o meu
caso.
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Jon Fosse. Escritor norueguês é sempre lembrado para o Nobel
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Como o senhor
define que uma história será prosa ou teatro?
Simplesmente, começo a escrever e, se
meu objetivo é uma peça, é assim que escrevo, se quero que seja uma prosa, é a
mesma coisa. Aliás, muitas pessoas afirmam que não importa se você escreve uma
peça ou uma prosa, não há diferença. Mas acho que tem. A prosa, pelo menos da
maneira que trabalho, tem muitas limitações, com certeza não tantas como uma
peça de teatro. Quando se trata de ficção, de alguma maneira tenho de tornar as
regras do universo da escrita mais pessoais. Isto naturalmente ocorre durante o
próprio ato de escrever. Não é possível formular estas regras de maneira explícita,
elas são muitíssimo complicadas. Quando escrevo, ouço. E, num determinado
momento, sinto que a peça ou o trabalho de prosa está ali, pronto, só tenho de
colocar no papel o mais rápido possível, antes que desapareça. A propósito,
estou escrevendo apenas ficção no momento e não tenho planos para escrever uma
nova peça.
Na sua opinião, os
romancistas têm uma obrigação moral com seus personagens e leitores?
A única obrigação é escrever bem, e
do modo mais autêntico possível. Adicionar desígnios morais, religiosos e
políticos é contrário aos elementos fundamentais da arte: isto tem de
acontecer. Como uma dádiva. E, neste caso, atende também à sua exigência ética.
Escrever mal não é só isto, é falta de moral, de certa maneira, um
pecado.
Hoje, o jornalismo
narrativo americano se assemelha muito à ficção nos livros e extrai sua
inspiração do arco narrativo clássico. O senhor acha que ainda haverá lugar
para a escrita de ficção deliberadamente literária?
Esta mistura do ficcional com o
factual é muito comercial e um modo impróprio de escrever. Não simpatizo com
isto. Ou você escreve como artista, e cria, ou escreve como um estudioso, um
historiador, um jornalista. Existe um elemento de ficção em tudo o que é
escrito, mas, no jornalismo, o indivíduo tem de tentar limitar isto o máximo
possível. Naturalmente, existe um futuro para a literatura como arte. Prosa,
poesia, drama. Mas duvido que exista um futuro, ou um futuro honesto, em
mentir, fingir que é verdade. É uma mentira. A literatura é mentir de maneira
que seja verdade.
Em que aspectos o
senhor acha que a narrativa literária deve se afastar ou mudar quando se trata
de fazer jornalismo?
Jornalismo é jornalismo. Literatura é
literatura. Esta distinção sempre existirá e estou certo que veremos a
diferença de modo mais claro no futuro.
Hoje, a História
está muito interessada em detalhes. A literatura está assumindo seu lugar?
Acho que a História tem de se
preocupar com os detalhes, é preciso focar no que realmente aconteceu e fazer
uma representação do fato. Naturalmente, isso implica interpretação, um pouco
de ficção, se preferir, mas o historiador terá de ser o mais acurado possível.
A História é necessária, o jornalismo é necessário, como também a literatura.
Mas não são absolutamente a mesma coisa. E, para mim, o chamado romance
histórico é uma mentira, uma impostura. E me desagrada muito.
TRECHO
"Düsseldorf, tarde de final de
outono, 1853: eu estou deitado na cama, em meu terno de veludo roxo, meu fino
fino terno, e não quero encontrar Hans Gude. Não quero ouvir Hans Gude dizer
que ele não gosta de meu quadro. Quero simplesmente ficar na cama. Hoje não
poderei suportar Hans Gude. Porque e se Hans Gude não gostar de meu quadro e o
achar constrangedoramente ruim, achar que eu não sei mesmo pintar, e se Hans
Gude com seus dedos finos coçar a barba e com seus olhos apertados me encarar e
disser que eu não sei pintar, que meu lugar não é na Academia de Belas-Artes de
Düsseldorf e, aliás, não é em nenhuma outra...?"
MELANCOLIA
Autor: Jon Fosse
Tradução: Marcelo Rondinelli
Editora: Tordesilhas (408 págs.,R$ 48)
[Fonte:
www.estadao.com.br]
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