Ao catalogar seus originais, fundação encontrou 21 poemas inéditos do chileno, publicados agora em 'Teus Pés Toco na Sombra'
Por MARIANA
IANELLI
Uma
âncora, exumada do corpo morto de um navio, repousa no jardim da casa de Neruda
em Isla Negra. Essa imagem, do poema Ode
à Âncora, cabe como metáfora incidental dos
21 poemas inéditos que a Fundação Pablo Neruda encontrou ao catalogar os
originais manuscritos e datilografados da obra do poeta em 2011, localizando-os
e comparando-os aos livros já publicados, inclusive os póstumos.
Como aquela âncora inesperadamente
entre plantas e flores, porém sempre alusiva ao mar, ainda que fora dele, essa
recolha de inéditos tem forte relação com os livros de odes e navegações de
Neruda da década de 1950 e, ao mesmo tempo, em seu conjunto, compõe um livro
completamente novo. Com tradução e texto de orelha de Alexei Bueno, introdução
e notas de Darío Oses, diretor da Biblioteca e Arquivos da Fundação Pablo
Neruda, Teus Pés Toco na Sombra traz
ainda, na edição brasileira bilíngue, prólogo de Pere Gimferrer e uma edição
fac-similar dos manuscritos.
Pablo Neruda (1904-1973) ganhou o Nobel de Literatura em 1971
Pela
riqueza de informações fornecida por Oses, sobre a genealogia dos poemas e os
prováveis livros aos quais estariam destinados, é possível presumir a época e o
lugar de cada texto dentro da incomensurável geografia dos cantos de Neruda,
isso quando os próprios inéditos não aparecem datados, alguns deles com registro
de local e horário. Entre esses, há a curiosidade de um poema que o autor
escreveu no verso de um programa musical, a bordo de um transatlântico, em
1967, e outro manuscrito num menu, contendo uma anotação com a letra de
Matilde: “Día 29 - Diciembre 1952 - 11 de la mañana - volando a 3500 metros -
de altura entre - Recife y Río Janeiro”.
O conjunto
vai de 1952, quando Neruda regressa ao Chile após anos de exílio, a 1973, pouco
antes de sua morte. Na maioria, são (14) poemas encontrados em meio a
manuscritos de odes de 1954 a 1959. Os demais (exceto o poema de 1973)
pertencem à década de 1960 e estão ligados à casa e às recordações do poeta em
Isla Negra. Poemas de Amor, seção que abre o livro, reúne seis elogios a
Matilde Urrutia, a amada que Neruda mitificou em sua poesia. Na seção Outros
Poemas, diversificam-se os motivos, são genealogias do poeta e sua pátria,
elementos do homem e do cosmo confundidos, recorrências à força da terra, dos
povos, das raças, e aos emblemas vários de sua exploração, como o que está
simbolizado em “un siglo de sombra”.
Num
inventário de temas representativos do caráter elementar e planetário desse,
como dizia Vinicius de Moraes, “cantor geral” que foi Neruda, têm destaque no
livro os poemas mais longos, de cunho biográfico, em que o autor trata da
própria poética num tom crítico ou sarcástico. Ultrapassando a oposição entre
“o literário” e “a vida”, Neruda coloca outro dilema mais difícil: o da vida
sem tempo para o tempo da poesia. Exemplo disso é o poema que lembra o
terremoto na cidade chilena de Valdívia em 1960: “Agora o homem está ocupado /
e não mira o bosque profundo / já não investiga a folhagem / nem lhe caem do
céu as folhas / está ocupado o homem agora / ocupado em cavar sua cova”. Ou
ainda os antológicos versos que falam da relação do poeta com o telefone: “Eu,
poeta torpe como um pato na terra, / fui me corrompendo até conceder / minha
orelha superior (que consagrei / com inocência a pássaros e música) / a uma
prostituição de cada dia, conectando ao ouvido o inimigo / que foi se
apoderando do meu ser”.
Embora
diversos poemas tenham sido encontrados entre manuscritos destinados à
publicação, caso do poema ao telefone, que seria incluído no livro Defeitos
Escolhidos, todos os inéditos formam agora uma geografia especial, que não é
apenas do espaço senão também do tempo, quando, depois de aprender a ser tão
necessário para um povo como um “bom foguista”, o poeta se torna também “capaz
de céu”. É aí que uma estrela, para Neruda, além de encarnar a estrela de
Maiakóvski, faz-se matéria de uma poesia futura.
Leia Mais:http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,poemas-ineditos-de-pablo-neruda-sao-reunidos-em-livro,1760828 Assine o Estadão All Digital + Impresso todos os dias Siga @Estadao no Twitter |
'Poema
5'. É possível, diz o organizador Darío Oses, que Neruda tenha escrito esse
poema quando voltava da Europa para passar o Ano-Novo com Matilda, no Uruguai.
Um poema sobre os primeiros astronautas confirma esse interesse
(com exemplos em outros livros) por novos descobrimentos, ao que se acrescentam
as observações de Darío Oses sobre a interlocução de Neruda com o cosmonauta
Alexei Leonov e quanto o atraía essa nova perspectiva da Terra, a ponto de
escrever em 1962: “A poesia tem que buscar novas palavras para falar dessas
coisas”. Sob esse ponto de vista, o leitor poderá ressignificar o verso: “Digo
bom-dia ao céu”. Também enriquecedora a nota ao último poema, que remete à
“massa existencial” dos mares de Neruda. Desses mares, como aquela âncora num
jardim em Isla Negra, carregada de memórias transmigrantes, Teus Pés
Toco na Sombra, como um todo, é o poema vivo e necessariamente póstumo de um
regresso. Neruda para velhos e novos leitores.
TEUS PÉS TOCO NA SOMBRA E
OUTROS POEMAS INÉDITOS
Autor: Pablo Neruda
Trad.: Alexei Bueno
Editora:
José Olympio (144 págs.; R$ 28,90; bilíngue)
[Fonte: www.estadao.com.br]
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