Obra do
colombiano, adaptada para o cinema, chega em breve às livrarias brasileiras e
inaugura o catálogo da editora Rádio Londres
Por WILSON
ALVES-BEZERRA
O
colombiano Andrés Caicedo (1951-1977), em uma carreira de cerca de dez anos,
dedicou-se sobretudo à crítica de cinema, de música, a escrever contos, peças
de teatro e à agitação cultural. Viva a Música! (1977) é
seu único romance, publicado no dia de sua morte, quando ele decide, aos 25
anos de idade, tomar 60 comprimidos de Seconal e pôr fim à vida. Uma carta à
namorada, Patricia Restrepo, escrita naquele 4 de março, dá testemunho de seu
estado de tormento e paixão: “Não pense que a satisfação de ter recebido hoje o
primeiro exemplar do meu romance possa se comparar à absoluta infelicidade que
eu sinto pelo desprezo que agora você sente por mim”. Outra, à mãe, do mesmo
dia, dá mostras da sua fragilidade: “Sou eu quem te perde”.
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Paixão, fragilidade e, sobretudo, urgência são os elementos que
marcam o romance Viva a Música! – que
passados 38 anos chega ao Brasil. Romance único de um autor jovem, suas linhas
exalam um saboroso imediatismo. A narradora é uma garota burguesa, loura, que
se orgulha de seus longos cabelos. Suas aventuras pessoais – sobretudo
incursões noturnas, tóxicas e musicais – são narradas atropeladamente para o leitor
que tem por obrigação acompanhar o seu vigor: “Isso foi na semana passada,
agorinha no sábado. Não quero me adiantar muito, para a gente não terminar
começando pelo rabicho, que é difícil de pegar, que se debate e se enrosca.
Gostaria que o estimado leitor acompanhasse a minha velocidade, que é
energética”. (tradução minha)
Produzindo literatura urbana e
jovial, Caicedo afasta-se radicalmente do encantamento pela selva que produz o
já então celebrado García Márquez (1927-2014), e dá mostras de ter bebido muito
na psicodelia e na literatura beat. O rock, o cinema e outras referências da
cultura pop são também centrais para as experiências vitais da personagem, mais
que isso, são o amálgama de suas descobertas e lhes conferem sentido, como se
pode ver nesta cena, em que Ricardo, o amigo insone, vem visitar a
protagonista, e entra na penumbra de seu quarto: “Essa camisa verde profunda e
lilás, plenamente psicodélica. A palavra me fez arquitetar que se eu baixasse a
veneziana, pintaria sombras horizontais no corpo dele, que se eu lhe tirasse a
camisa, ele seria uma espécie de John Gavin com 30 quilos a menos, e que ambos
éramos, ali, naquele quarto de uma casa perdida em uma cidade desolada e
ardente, nada menos que o início de Psicose, esse filme que não quis nunca
voltar a ver, para não o esquecer”.
Ao lado da embriaguez trazida pela
juventude, pela noite, pela insônia, pela droga, há também uma dimensão
política que atravessa o livro: a protagonista, bem de vida, confronta-se a
todo momento com a diferença social e cultural. Um grupo de rapazes que estuda O Capital, de Marx, apresenta-se sempre como uma
possibilidade. Depois de apenas uma reunião, ela troca a piscina pelo rio, que
nem sabia que existia. O grande mérito de Caicedo é exibir o intricado das relações
sociais, sexuais e culturais na perspectiva e nas palavras de uma adolescente
ávida por experiências, legando ao leitor as articulações.
É certo que a morte precoce e seu
livro roqueiro já bastaram para fazer de Andrés Caicedo um herói juvenil. Porém,
pensar sua literatura na chave da beat generation, por um lado, e no quadro
mais amplo de uma narrativa urbana de língua espanhola – desde os anos 20 com o
argentino Roberto Arlt (1900-1942), para seguir com o uruguaio Juan Carlos
Onetti (1909-1994) – num contexto em que o exotismo do continente estava em
voga, confere a seu Viva a Música! uma dimensão singularmente importante.
Esperamos que a edição brasileira, que está prestes a ser publicada, possa
estar à altura da sofisticação da linguagem oral trazida por Caicedo, com suas
gírias e giros de humor desesperado.
WILSON
ALVES-BEZERRA É ESCRITOR,TRADUTOR E PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE LETRAS DA
UFSCAR
[Fonte: www.estadao.com.br]

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