Por SIMON ROMERO
do "NEW YORK
TIMES", em São Paulo
Por motivos óbvios, muitos paulistanos continuam a
considerar o decrépito centro velho da cidade como uma área a evitar.
Ladrões de carros e quadrilhas de sequestros atacam
os motoristas nos semáforos. Invasores ocupam dezenas de edifícios
completamente grafitados. Drogados emaciados caminham pelas ruas fumando crack
em plena luz do dia.
Mas se você entra no apertado cibercafé operado por
Jean Katumba, um quadro diferente emerge.
"As pessoas dizem que essa parte da cidade é
feia, mas eu vejo beleza aqui", diz Katumba, 37, que chegou da República
Democrática do Congo apenas 11 meses atrás.
Katumba estudou engenharia em Kinshasa, a capital
congolesa, mas ganha a vida no bairro da Baixada do Glicério, uma região de
alta criminalidade, alugando computadores a clientes que falam grande variedade
de idiomas, do crioulo haitiano a espanhol com sotaque colombiano e o lingala
de sua terra natal.
"Para mim, São Paulo significa uma grande
coisa: oportunidade", diz Katumba.
Muitos empreendimentos semelhantes, criados por
imigrantes, estão florescendo em meio à decadência do centro velho de São
Paulo, refletindo as mudanças nos padrões mundiais de imigração. Para reforçar
o status de São Paulo como a cidade mais globalizada do Brasil, asiáticos,
primordialmente chineses; africanos; e latino-americanos de fala espanhola não
param de chegar.
São Paulo, a maior cidade da América do Sul, com
população metropolitana que se aproxima dos 20 milhões de pessoas, abriga
oficialmente 368 mil estrangeiros. Mas a melhora no padrão de vida brasileiro
está atraindo atenção em países mais pobres, e a cidade passou a experimentar
um forte surto de imigração extraoficial. Embora as estimativas variem muito,
as autoridades calculam que o número real de imigrantes seja de 600 mil, muito
inferior ao encontrado em um lugar como Nova York –que conta entre seus
habitantes três milhões de pessoas nascidas no exterior– mas consideravelmente
mais alto que o de qualquer outra cidade brasileira.
Nas ruas, esse influxo está revitalizando uma área
central que, nas últimas décadas, veio a simbolizar o abandono e a degradação
de grandes áreas de São Paulo.
"Às vezes ainda preciso passar por cima dos
viciados em crack para abrir a porta do meu restaurante", diz Edgard
Villar, um imigrante peruano cujo idioma natal é o quéchua, proprietário do
Rinconcito Peruano, no segundo andar de um edifício sem identificação; seu
estabelecimento atrai hipsters tatuados, moradores de áreas mais prósperas da
cidade. "Mas isso é bom, porque chegar aqui é parte da aventura para nossa
clientela".
Navegar pelas ruas e becos da velha São Paulo nem
sempre envolveu esse gostinho de aventura.
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Imigrantes haitianos em janela de prédio ocupado no centro de São Paulo |
Por séculos, depois da fundação de São Paulo
pelos jesuítas em 1554, as classes altas da cidade tinham o centro velho da
cidade como polo; foi lá que emergiram os primeiros marcos da cidade, entre os
quais a Bolsa de
Valores e arranha-céus modernistas. Imigrantes, em sua maioria vindos da
Itália, Portugal, Espanha e Oriente Médio, tomaram a área no final do século 19
e começo do século 20.
Mas, nas últimas décadas, os incorporadores
imobiliários em geral vêm ignorando o centro velho, o que resultou no
surgimento de uma metrópole de área muito ampla, repleta de congestionamentos e
caracterizada por condomínios fechados, vastas favelas, shopping centers
fortemente vigiados, edifícios de luxo equipados com heliportos e novos
distritos financeiros ao longo de vias importantes como a avenida Paulista e a
avenida Brigadeiro Faria Lima.
Enquanto isso, o centro velho, a despeito de
contar com uma infraestrutura invejável de transporte, caiu em declínio ainda
mais profundo. Seus edifícios residenciais de aluguéis baratos estão envoltos
em camadas cada vez mais densas de pichações, a enigmática modalidade
paulistana de grafite que lembra as antigas runas da Escandinávia.
"Nessa área a vida é perigosa, mas os preços
continuam baixos", diz Kowk Man Long, 28, imigrante chinês que é dono de
uma loja que vende produtos de iluminação. A comunidade chinesa de São Paulo,
formada primordialmente por pequenos empresários, proprietários de pequenas
lojas de comida e materiais de construção, hoje ultrapassa as 100 mil pessoas,
estimam Long e outros membros da comunidade.
A nova onda de imigração de São Paulo contrasta
com as precedentes. Depois da derrubada do imperador d. Pedro 2º, em 1889, a
primeira Constituição republicana do Brasil promovia uma política de
"branqueamento" da sociedade brasileira por meio de imigração
europeia e de restrição à imigração da África e da Ásia, de acordo com estudiosos.
Uma exceção notável foi estabelecida para os
imigrantes do Japão, dando origem, no Brasil, à maior comunidade mundial de imigrantes japoneses e
seus descendentes, com mais de 1,3 milhão de pessoas. Nos últimos anos, a
Liberdade, tradicional bairro japonês no limite do centro velho, registrou uma
forte alta na imigração chinesa.
Muitos dos novos imigrantes de São Paulo, quer
tenham vindo da Ásia, América Latina, África ou do sul da Europa (a cidade
também recebeu um novo influxo de espanhóis e portugueses, por conta da crise
da dívida europeia), se deixam atrair em parte pelas normas relaxadas do Brasil
quanto à imigração.
Embora leis aprovadas nos anos 80, durante a
ditadura militar brasileira, tenham criado diversos obstáculos à imigração
legal, deportações continuam raras. Enquanto isso, as autoridades concederam
diversas anistias a imigrantes não documentados, desde os anos 80, permitindo
que as pessoas permaneçam no país mesmo depois que seus vistos tenham vencido
ou atravessem as porosas fronteiras brasileira sem autorização, para obter
residência legal.
A degradação persiste para muitos, em meio à
prosperidade dos negócios dos novos imigrantes no centro velho, e as
autoridades fazem buscas regularmente nas oficinas de costura onde
trabalhadores, a maioria dos quais imigrantes bolivianos e peruanos, labutam em
condições semelhantes à escravidão.
A vulnerabilidade de alguns imigrantes à
exploração e ao crime violento ficou evidente em um trágico episódio no ano
passado no qual criminosos mataram a tiros um menino de cinco anos, filho de
imigrantes bolivianos, em um assalto frustrado à casa da família. Centenas de
bolivianos, uma das maiores comunidades de imigrantes em São Paulo, saíram às
ruas em um protesto que coincidiu com as grandes manifestações que
convulsionavam o país no período.
"Subitamente, em meio aos protestos de rua
mais amplos, surgiram das sombras os bolivianos", diz Jeffrey Lesser,
historiador da Universidade Emory em Atlanta, cuja especialidade é a imigração
para o Brasil. "Foi um exemplo vívido de afirmação pelos imigrantes de seu
lugar na esfera política."
Cineastas e escritores locais também estão
extraindo inspiração da onda imigratória. Um exemplo recente é "Destino:
São Paulo", uma minissérie de ficção produzida pela HBO Brasil que retrata
as peripécias de imigrantes coreanos, nigerianos, chineses, bolivianos e judeus
ortodoxos na cidade.
Tentando atrair os moradores ao centro velho, as
autoridades renovaram joias culturais como a estação ferroviária Júlio Prestes,
que se tornou sede da orquestra sinfônica de São Paulo. Os visitantes da sala
de concerto muitas vezes chegam de carro, evitando a agressão aos sentidos que
a Cracolândia, a região que cerca esses marcos culturais da cidade, oferece.
Mas para aquelas que caminham pelo labirinto de
ruas vizinhas, a dinâmica que faz de São Paulo uma das grandes cidades de
imigração do planeta entra em foco. No térreo de um edifício invadido da
alameda Barão de Limeira, uma rua que ostenta decadentes edifícios em estilo
art déco, Mélanito Biyoutha decidiu fazer sua aposta.
"Dizem que São Paulo é a Nova York do
Brasil, mas um dia talvez as pessoas vejam Nova York como a São Paulo dos
Estados Unidos", diz Biyoutha, 43, imigrante camaronesa que abriu um
restaurante que serve comida de seu país e de outras nações africanas.
"Esta cidade não é perfeita", ela acrescentou, "mas o mundo todo
está vindo para cá".
Tradução de PAULO MIGLIACCI
[Foto: Eduardo
Anizelli – fonte: www.folha.com.br]
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