Se uma repórter jovem carente de garra para investigação e sem experiência fosse enviada ao hospital San Magno (pivô da trama de Amor à vida) provavelmente escreveria mal a matéria da página de Cultura, e acabaria glorificando os vilões. O deadline apertado não lhe daria tempo de descobrir o veneno de Félix (Mateus Solano), encantador em seus ternos bem talhados, o sorriso encobrindo Lúcifer. Se ela não aprendeu a descascar as camadas do ser humano, palimpsestos de personalidades contraditórias, ficaríamos privados de um perfil bem-feito. Como merece o personagem César (Antonio Fagundes).
Pai, médico e diretor do hospital, César jogaria glamour para a profissional inexperiente, com a finalidade bem sucedida de limpar o rombo financeiro e moral da instituição que dá espaço para uma enfermeira, e o próprio Felix, trocarem amostras dos pacientes e soros por água. César sairia na foto principal como o ótimo diretor de um hospital número 1 no ranking, e a publicação da matéria faria disparar o prestígio do San Magno. Atílio (Luis Melo) e Lutero (Ary Fontoura), testemunhas de crimes hediondos, nem seriam ouvidos – um tachado de lelé e outro de velho gagá, como Félix, o principal entrevistado, desenharia os dois para a tal repórter.
Paloma – Félix solta no ar –, já foi internada em hospital
psiquiátrico, e a jovem profissional nem se preocuparia em ouvir o
íntegro dr. Renan (Álamo Facó) sobre os métodos adotados pelos médicos
que a doparam. Ficaria sempre faltando história porque na trama de
Walcyr Carrasco a maldade tem geração espontânea e os personagens sofrem
de tanta alucinação, traição, enganação e mentiras que fica difícil
identificar a origem. Publicada, a matéria “cultural” soaria como mais
um release. Nenhuma novidade para o leitor brasileiro que se acostumou a
ler mais do mesmo.
No clássico Dicionário de Cinema, de Jean Tullard (Robert
Laffont,1982), o cineasta japonês Yasujiro Ozu explica como os filmes de
enredos e intrigas elaborados demais o aborrecem. Para ser bom, ele
diz, “é preciso renunciar a excesso de drama e a excesso de ação”.
A reportagem sairia na capa do caderno de “Cultura”, em página inteira,
com aspas, travessões e belas fotos, mas ficaria a léguas de distância
da realidade. Que é mais ou menos o que temos engolido em reportagens
que nunca chegam ao fundo, das questões e do inferno. Com temas que
insistem na insustentável leveza como a saturação de coberturas de
novelas, da Globo em especial, e personagens abordados como se fossem
reais. Estaríamos lendo ficção ou realidade? Essas coisas se confundem
tanto que já nem sabemos mais se a cobertura da novela dentro da novela é
mais uma novela da vida dos artistas.
Está faltando tempo de apuração, o espaço essencial para fornecer o
claro-escuro. Desculpe o transtorno, caro leitor(a), a imprensa hoje não
tem tempo disponível nem pretende gastá-lo com repórter enfurnado numa
matéria só. Atenção, profissional: se vai complicar, não beba em fontes
elaboradas porque novela rasteira como a das 9 na Globo, que encanta as
pessoas pelo avesso, virou a bola da vez. O Brasil já decidiu: não vai
pelo caminho americano de Bob Woodward e Carl Bernstein, que passaram
meses destrinchando o escândalo gerado numa notinha sobre o assalto à
sede do Comitê Nacional Democrata, em 1972. Isso, só no Washington Post dos anos 1970, que eventualmente derrubou um presidente dois anos depois. Mas isso é para quem pode.
Marxismo e ecologia
E o que o Gabeira tem com isso?
Sem ter ouvido Ozu – que morreu aos 60 anos, em 1963, fazendo filmes
eternos –, Gabeira, 72 anos, estreou há três semanas um programa de meia
hora na Globonews, no fim da tarde de domingo, com uma câmera na mão,
rugas no rosto e afinco de repórter velho de guerra. Com conhecimento
sobre os que respondem e os que perguntam, porque já viveu dos dois
lados. Suas matérias são tão simples que a realidade surpreende e
espanta. No primeiro domingo ele se embrenhou nos confins do Maranhão e
do Amapá – são os dois redutos de José Sarney – para mostrar o que a
falta de médicos no interior faz com os brasileiros. Envelhecidos
precocemente, servindo-se de curandeiros, parteiras de família, remédios
caseiros e fé em Deus, eles vão sobrevivendo enquanto se aguentam.
Triste Brasil. Gabeira mostrou que cruzar uma estrada aqui é voltar dois
séculos atrás. E que os brasileiros falam outra língua, com outro
acento, e é real, não forçado como os personagens das novelas.
No segundo domingo ele voltou a Brasília, onde atuou como deputado
durante 16 anos, de 1995 a 2011. Ali não estava o homem público, mas o
jornalista denunciando a face desfigurada do Congresso, o descrédito, a
descrença, o desmoronamento de uma instituição que aceita um parlamentar
presidiário e vota na calada da noite projetos de interesse próprio –
deles, não da nação.
Gabeira sempre nos surpreendeu. Era editor do Departamento de Pesquisa do prestigiado Jornal do Brasil
quando em 1969, aos 28 anos, pediu demissão. Ia passar para o lado de
lá. O movimento Dissidência, um racha universitário do Partido Comunista
Brasileiro, resolveu sequestrar o embaixador americano Charles Burke
Elbrick e o local escolhido para cativeiro era a casa alugada por
Gabeira para instalar o jornal clandestino Resistência, na rua Barão de Petrópolis, entre o Rio Comprido e Santa Tereza, no Rio.
Jornalista, ele não participava do braço armado do grupo (que se
assumiu como MR-8), levava mensagens dos sequestradores para divulgação
na imprensa, comprava comida e conversava com o embaixador – que revelou
ser contra a tortura e declarou sua preferência para presidente do
Brasil: Dom Helder Câmara, odiado pelos militares.
Quinze presos políticos foram trocados por Elbrick, entre eles o líder
estudantil Vladimir Palmeira, preso na Ilha das Cobras, e o também
jornalista e assessor informal de Dilma Rousseff, Franklin Martin, além
de José Dirceu. Pouco depois, em 1970, Gabeira seria apanhado. Ao tentar
fugir levou tiros que perfuraram seu rim, estômago e fígado. Foi
libertado em junho do mesmo ano junto com 38 presos políticos trocados
pelo embaixador alemão Ehrenfried von Holleben. Exilado de 1970 a 79
entre Argélia, Chile, Suécia e Itália, Gabeira se formou em Antropologia
e foi repórter, condutor de metrô, porteiro de hotel. Voltou com a
decretação da anistia, inaugurando nas praias cariocas uma sunga de
tricô lilás, parte de baixo do biquíni da prima e jornalista Leda Nagle,
causando furor no país que acordava de 21 anos de ditadura. Gabeira
vinha das praias europeias, acostumado ao nudismo.
Filiado primeiro ao PT depois ao PV, concorreu à presidência da
República em 1989, e perdeu por pouco a prefeitura do Rio para Eduardo
Paes, em 2008. Dois anos depois perderia o governo para Sergio Cabral.
Ator da história do Brasil, descreveu o primeiro sequestro de um embaixador em O Que É Isso Companheiro (1979), 250 mil livros vendidos em 40 edições, que virou filme de Bruno Barreto, em 1997. Fez a continuação em O Crepúsculo do Macho em 1980, sobre as duas revoluções vivenciadas do lado dos que perderam –
Brasil em 1964, Chile em 1973 –, lembrando como o regime democrático
morreu sem lutar.
Remoeu no ano seguinte em Entradas e Bandeiras a adaptação da volta depois de anos de exílio e a troca da ideologia marxista pela ecologia. No mesmo ano confirmou a opção em Hóspede da Utopia. Em 1982, escreveu sobre a libertação feminina em Sinais de Vida no Planeta Minas, com a biografia de cinco mulheres, entre elas a socialite Ângela Diniz,
morta à queima roupa na Praia dos Ossos, Armação de Búzios, aos 32 anos
em 1976, pelo namorado Doca Street – e condenada pelo júri popular
formado na maioria de mulheres que absolveram o assassino no primeiro
julgamento.
A diferença
Ainda no exílio, em 1979, a entrevista que ele concedeu ao Pasquim, um relato importante sobre o período negro da história do Brasil.
Em 1984 faz outro retrato da crise brasileira em Diário da Crise, e em 1985 Vida Alternativa e um diálogo com o líder do movimento de maio de 68 na França, Daniel Cohn-Bendit. Em 1987, crônicas em Etc 7 Tao, um Diário da Salvação do Mundo e Goiânia, rua 57 – o Nuclear na Terra do Sol, sobre o acidente radiológico com o césio-137 que afetou 240 pessoas.
Greenpeace – Verde Guerrilha da Paz, em 1988. Em 2000, A Maconha, sobre a descriminização. Seis anos depois Navegação na Neblina,
o escândalo dos sanguessugas sobre a quadrilha que desviava dinheiro
público destinado à compra de ambulâncias.
Este ano foi a vez da grande
revisão, Onde Está Tudo Aquilo Agora? As editoras dos seus
livros nunca são as mesmas, Rocco, Companhia das Letras, Codecri,
L&PM, Creative Commons, Folha, Nova Fronteira – o importante é
escrever e ser lido.
Gabeira fez inserções há duas décadas como repórter de TV no programa Vídeo Cartas,
da Bandeirantes, onde entrevistou, na Colônia Juliano Moreira, o genial
(ou louco?) Antônio Bispo do Rosário e suas artes mágicas – como o
manto que confeccionou para ir ao céu. Além de registrar o enterro de
Tancredo Neves, as diferenças do tratamento da morte entre Ocidente e no
Oriente, a poluição na Baía de Guanabara, a quebra do ecossistema no
Pantanal e os problemas na Nova República inaugurada depois da ditadura.
No total, 165 mil visualizações no YouTube.
Gabeira está no Facebook, tem blog e coluna no Estado de S.Paulo.
No domingo (22/9), virou andarilho atrás dos personagens (reais) que
percorrem a estrada entre Rio e São Paulo há 17, 25 anos, sem destino, on the road
como o livro de Jack Kerouac que ele cita, alguns carregando a bíblia,
outros “só Deus sabe” o quê. O próximo é sobre presídio de mulheres.
Daqui para a frente não se sabe onde mais ele vai estar. Talvez nem ele. Como a epígrafe de O Que É Isso, Companheiro?, pescada do livro Jean Christophe,
de Romain Rolland, “cada um dos nossos pensamentos não é mais do que um
instante de nossa vida. De que serviria a vida se não fosse para
corrigir erros, vencer nossos preconceitos e, a cada dia, alargar nosso
coração e nossos pensamentos. Nós utilizamos nossa vida para alcançar um
pouco mais de verdade. Quando chegamos ao fim vocês dirão, então, o que
é que valeu a pena”.
E se na novela de Walcyr Carrasco não se sabe onde entra o Amor à Vida, na história de Fernando Gabeira esse título cabe bem. Esta é a diferença entre jornalismo e entretenimento.
***
Norma Couri é jornalista
[Fonte: www.observatoriodaimprensa.com.br]
Sem comentários:
Enviar um comentário