Professora e escritora argentina, uma
das mais proeminentes críticas da sociedade e da literatura de seu país,
Beatriz Sarlo é conhecida por seus estudos sobre literatos como Jorge
Luis Borges e Julio Cortázar.
No Fronteiras do Pensamento 2008,
Sarlo desconstruiu certas ideias sobre a cultura contemporânea ao
demonstrar como o que caracteriza a cultura de hoje não é a imagem, mas a
difusão massiva dos textos – como o usuário que está lendo este preciso
artigo; que a globalização apenas deu mais acesso àquilo que já estava
instituído – comparando atores de hollywood e bollywood; e que a
aceleração do consumo cultural não vem da tela, vem do rádio – primeiro
meio a transmitir eventos ao vivo. Abaixo, Beatriz Sarlo fala sobre a
ilusão da facilitação ao acesso à arte que a internet proporciona:
Diz-se que a cultura está aí, rodeada pela intervenção muito mais
atraente, muito mais dinâmica, muito mais interpeladora das culturas
juvenis da imagem e dos meios audiovisuais. Eu diria que a situação não é
exatamente assim. No sentido que falarei, no ocidente foram somente os
últimos dois séculos, quando a escrita teve forte peso.
Nós cremos que a imagem é uma novidade e, pelo contrário, a grande
novidade para o ocidente foi a difusão da letra escrita. Foi o momento
em que as culturas campesinas e as culturas populares se alfabetizaram e
passaram a consumir a letra escrita.
Passaram a consumir jornais, folhetins, almanaques e romances
populares. Isso ocorreu só a partir de um momento do século XIX e, na
América Latina, eu diria que começou a suceder no início do século XX.
Pensar que a novidade da nossa situação é a cultura da imagem é passar
por alto que, na realidade, o novo da nossa situação é que vivemos, pelo
menos no ocidente, em um mundo onde a letra escrita é extremamente
importante.
Naveguem pela internet. Quando se sai da superfície visual, do primeiro
impacto, as pessoas que verdadeiramente navegam pela internet sabem que
internet é uma massa gigantesca de texto, de letra escrita, é um anel
de saturno que rodeia este planeta e os maiores componentes químicos
desse anel de saturno são letras escritas.
Ou seja, se aderimos a uma perspectiva, devemos dizer que a letra
escrita é a novidade dos últimos 150 anos no ocidente, e é a novidade dos
últimos 100 anos na América Latina.
Outra questão que nos dizem sobre a cultura que rodeia a arte e a
literatura contemporâneas é que é uma cultura segmentada em nichos. É
uma visão muito otimista da cultura, onde cada um de nós, dentro de
nossas casas, possuindo um, dois ou três controles remotos e acesso à
internet banda larga e um bom reprodutor de MP3 pode preparar seu
próprio menu cultural.
Essa é a ideia que a cultura contemporânea transmite, de que todos
somos livres para preparar nosso menu cultural. Ninguém guia nossas
cabeças.
Eu diria que nós, que pertencemos a uma elite cultural por uma razão de
privilégio cultural e social, sempre fomos livres para preparar nosso
menu cultural. Nunca necessitamos de iPod para preparar nosso menu
musical e não necessitamos de internet para preparar nosso menu de
leitura: sempre fomos livres.
Os que não foram livres para preparar seu menu cultural, hoje também
não possuem esta banda larga, esta grande quantidade de reprodutores de
MP3 e uma televisão plasma onde os filmes são vistos como devem ser
vistos. Também não possuem.
Ou seja, a liberdade para preparar o menu cultural continua sendo a
liberdade de um nicho sócio-cultural que sempre teve essa liberdade.
Escolheu os livros, escolheu as músicas, escolheu os teatros e hoje pode
escolher baixar todos os MP3 que quiser. Porém, a pessoa que faz isso sempre teve uma versão da consagração entre seus discos. Primeiro teve
em um disco setenta e oito, depois seu avô, depois seu pai teve em um
disco de trinta e três revoluções, depois ele ou ela teve em um CD e
hoje baixa em um minuto de um MP3 e o carrega em seu iPod.
Porém, sempre teve essa versão. Esses nichos culturais são nichos de
privilégios social e cultural, não falo de privilégio econômico, falo de
privilégio social, em termos de classe social. Estou falando da relação
entre capital cultural e as frações sociais. Portanto, a ideia de que
todos somos livres para preparar nosso menu de consumo é uma ideia que
me parece singularmente otimista.
[Fonte: www.fronteiras.com]
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