quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Uma história de violência

Triunfou nos Prémios Goya com nove estatuetas e confirma Denis Ménochet como um dos atores franceses do momento. Entre o thriller e o westernAs Bestas, de Rodrigo Sorogoyen, observa de forma exímia o lado pouco idílico, ou mesmo fatal, da vida no campo.

                                     Denis Ménochet e Marina Foïs, um casal francês em apuros na Espanha rural.

Escrito por Inês N. Lourenço

Há uma história verídica por trás do enredo de As Bestas: em janeiro de 2010, na aldeia espanhola de Santoalla do Monte, o holandês Martin Verfondern foi morto a tiro depois de meses de um clima de hostilidade com a família vizinha, os Rodríguez. A viver naquele lugar remoto da Galiza desde 1997, Martin e a esposa, que tinham vindo da cidade para o campo com intenções de concretizar um projeto de vida ecológica, esbarraram nos instintos agressivos de tais vizinhos, que não lhes reconheciam quaisquer direitos em relação ao terreno comunal, apesar de a lei galega dizer o contrário... O cadáver só foi descoberto em 2014, e a viúva de Martin, Margo Pool, manteve-se na aldeia, onde ainda hoje permanece.

O filme de Rodrigo Sorogoyen não é uma réplica do que aconteceu. Mas toda a sua envergadura dramática parte desse conflito humano em paisagem aberta, que desabrolha como que de uma semente de violência lançada à terra. Em As Bestas, o casal protagonista é francês - interpretado por Denis Ménochet e Marina Foïs, ambos espantosos -, e deixou no país uma filha jovem adulta. Levando uma existência pacífica naquele pequeno meio espanhol, entre o cultivo da horta, a venda dos seus produtos agrícolas e o restauro de casas abandonadas (para futuro turismo rural e reabilitação da própria aldeia), estas pessoas civilizadas, com estudos, e cujo intelecto não cai bem a certos indivíduos que toda a vida só conheceram os modos brutos, vão encontrar na ação concertada de dois irmãos dessa estirpe uma crescente atmosfera ameaçadora.

No centro da hostilidade (aqui também diferente da história original) está o facto de Antoine, o homem francês, não aceitar vender o terreno comunal a uma empresa de energia eólica, por acreditar que a aldeia ainda pode inverter a sua tendência de desertificação e, acima de tudo, por considerar que aquela é a sua casa. Uma ideia romântica para os locais, que já não veem ali nada e só querem ver a cor do dinheiro para se porem a andar, e uma atitude que reforça o ódio desses irmãos em relação ao "estrangeiro invasor", que se "apoderou" da terra à qual não pertence como eles pertencem.

É por aí que se cose a tensão, ou o terror humano, de As Bestas, seguindo o corpo volumoso de Ménochet ora no café do lugarejo, onde o irmão com pose de carrasco (Luis Zahera) destila um tom trocista e sombrio, ora no caminho para casa, de carro ou a pé, sempre envolvido por uma nota sonora perturbadora, que alimenta uma interessante contradição. Esta: Ménochet, cujo corpo robusto contém a própria sugestão de violência (e basta lembrar a sua personagem de pai e marido agressor em Custódia Partilhada, de Xavier Legrand), surge neste contexto como a figura fisicamente vulnerável, com parcos métodos de defesa (uma câmara de vídeo), que no fim de contas não tem como escapar aos lobos que o cercam. E é brilhante o momento que Sorogoyen escolhe para construir o auge da sua demonstração de violência, perfeitamente calibrada e sem espetáculo, num campo só habitado por árvores, cuja amplitude da paisagem vai reduzir-se a um emaranhado de corpos num realista e silencioso uso da força.

O que me pareceu mais inesperado em As Bestas foi que o realizador espanhol soubesse convocar tão habilmente a pulsação do thriller e a aridez do western - com um apontamento quase poético de cavalos selvagens pelo meio - sem se vincular, por definição, a um género ou outro. Nesse intervalo entre dois registos, Sorogoyen tece a complexidade das suas personagens, dando espaço para a leitura renoiriana ("todos têm as suas razões"), mas nunca anulando a vertigem da existência naquele cosmos rural, que se torna irrespirável fora das quatro paredes.

Dentro delas, o último reduto de amor e respeito vem a justificar, por fim, a conversão narrativa do mundo masculino numa esfera feminina: Marina Foïs toma o lugar de Ménochet na última etapa do filme, minando a partir de dentro a lógica desse mundo de homens, desde logo com uma serenidade que nos acompanha bem depois dos créditos.

Não é, portanto, um Cães de Palha (Sam Peckinpah, 1971), embora desconfiemos que o realizador tenha presente essa referência, mas sim um filme que encontra na sua economia visual um caminho mais discreto para o impacto da violência. E talvez aí esteja a sua grandeza moderna, que mitiga a nostalgia dos referidos géneros trabalhando-os na expressão de um ator, Denis Ménochet (o Robert Mitchum francês, como lhe chamou Tarantino), capaz de condensar, na linguagem específica do corpo, a aura clássica e o medo real. Não muito diferente daquele medo que se sente no memorável início de Sacanas sem lei (2009), precisamente o filme de Tarantino onde Ménochet interpreta o camponês interrogado pelo coronel nazi de Christoph Waltz. Mais recentemente vimo-lo também como Peter von Kant na homenagem lúdica e garrida de François Ozon a Fassbinder. O que faz com que toda a dimensão telúrica de As Bestas assuma, no fascínio da sua presença, a qualidade de um instinto adormecido algures, como um homem feito ovelha no meio dos lobos. Fabuloso.

 

[Fonte: www.dn.pt]

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