Algumas empresas estão utilizando até ditado para peneirar candidatos a empregos, mas esse não é o melhor caminho
Por Josué Machado
A revista de circulação nacional manteve na Europa por anos um correspondente que escrevia magnificamente bem. Dados precisos, texto encadeado, elegante. Perfeito, não fosse o fato de suas reportagens chegarem temperadas por palavras como "gazolina"; "acessor" (por "assessor"); "excessão" (exceção); "obcessão" (obsessão), etc. Fora as gozações, que já tinha grafado "gosações", não havia o que fazer, pois as qualidades de repórter e redator suplantavam de longe os escorregões. Sofria de deficiência muito específica, que não o tornava menos respeitado pelos colegas.
Isso ocorreu antes do advento dos computadores com corretores de grafia. Os erros da grafia nos textos do correspondente servem para provar que esse é o aspecto menos importante da redação, embora desvios ortográficos causem estranheza e em geral estejam ligados à falta de escolaridade e leitura. Pois não há dúvida - dizem os sábios - de que é com leitura que se gravam na mente as estruturas da língua e, claro, o vocabulário e a grafia. É preciso ler, portanto. E escrever.
Sempre. Quem não puder enfrentar o texto de autores considerados bons, os clássicos ou nem tanto, que leia os ruins, que descrevem os 432 tons de lilás; os que falam da experiência de chorar à margem do Tietê; os dos conselhos sobre como viver bem e melhor; os de receitas definitivas para alcançar a beleza; os que indicam o caminho sem escalas ao céu; como encontrar o par ideal; como ficar rico sem fazer força; ser ou ficar bonito(a) e gostoso(a); atrair pessoas do sexo desejado, etc. Em casos extremos, serve até Marimbondos de fogo, do rei do Maranhão.
Familiaridade
Tudo serve para melhorar o vocabulário e fixar os blocos estruturais da língua. Haverá quem veja tais conselhos com reserva, mas é melhor ler textos medíocres do que não ler nenhum. A percepção visual de uma palavra costuma ser produtiva. E talvez o começo pela leitura mais fácil e ruim seja um estímulo para chegar à boa. É uma esperança.
Esperanças à parte, a maioria das pessoas que comete espalhafatosos erros de grafia quase certamente tem pouca familiaridade com leitura e língua escrita. Como demonstram levantamentos feitos por escolas e empresas. Algumas, aliás, estão adotando o ditado para selecionar (ou eliminar) candidatos a emprego. Como se fazia no 1o grau da escola antiga. De todo modo, melhor que o ditado não seja o filtro final de escolha, porque muita gente capaz de escrever bem, como nosso correspondente, pode claudicar na grafia. Verdade que ele era um caso raro, mas pode haver surpresas.
Se houver testes como esses, portanto, não convém dar-lhes peso fundamental, porque o examinando pode estar lidando com palavras que não conhece ou nunca usou, recebidas como sopapos num ditado. Redações e entrevistas orais por certo serão mais eficientes para avaliar a capacidade de comunicação escrita e oral dos candidatos. E que os temas propostos não sejam de livre escolha, porque algum espertinho será capaz de estudar de antemão o que terá de escrever.
O fato é que mesmo bons redatores, se não souberem algo de grego e latim, provavelmente serão reprovados se tiverem de reproduzir, ouvindo num ditado, palavras como "exsicar" (secar bem, ressequir - que se pronuncia "essicar"); "exsolver" (dissolver, apagar-se, desligar - pronuncia-se [essolver]); "exspuição" (ato de expelir pela boca - pronuncia-se "espuição") e exsudar (segregar em forma de gotas ou de suor - pronúncia "essudar"). Coisas assim, para lembrar algumas do grupo sx, serão pegadinha, não prova. E não estão longe de ser pegadinhas sem graça alguns testes de grafia correntes por aí, que poderiam incluir joias impostas pelo acordo ortográfico no capítulo do hífen, como "cor-de-rosa" ao lado de "cor de abóbora"; "paraquedas", "paraquedista", "paraquedismo" e "mandachuva", ao lado de "para-brisa", "para-choque", "para-lamas", "manda-lua" e "manda-tudo". Convém lembrar que "mandachuva" é sinônimo de "manda-tudo" - um sem e outro com hífen.
Ditado ardiloso
Se a moda do ditado ardiloso se fixar, os candidatos a emprego começarão a estudar listas de palavras de grafia complicada para enfrentar os testes. Como as nem tão complicadas, que o examinador de uma empresa ditou a candidatos e depois marcou como curiosidade entre os resultados: "ascepsia" por "assepsia"; "ediondo" (hediondo); "excassez" (escassez); "fulgás" (fugaz).
Acidentes, provavelmente. Talvez porque a maioria dos escribas hesita de vez em quando antes de grafar certas palavras. Mas quem escreve, forçado ou não, usa o próprio repertório vocabular - palavras que aprendeu e cujo sentido e grafia domina ou acha que domina. Por isso é surpreendente a lista que o Anglo Vestibulares, de São Paulo colheu, já faz tempo, de textos de aspirantes ao curso superior, a maioria com o ensino médio completo. Como se trata de pré-vestibular pago, supõe-se que a maioria tenha cursado escolas pagas de bom nível. Verdade que a coleta de distorções não foi sistemática nem feita em universo analisado adequadamente. De todo modo, a amostra é alarmante, considerado o nível de escolaridade dos autores.
Enfim, seleção é necessária, mas com equilíbrio e sem armadilhas juvenis. É por características complicadas, e por certas soluções infelizes do atual acordo ortográfico, principalmente referentes ao uso do hífen, que alguns professores propõem sua revisão. Querem mais uma, fora a série de 7 do século passado.
Pois a língua portuguesa é, provavelmente, a que mais reformas sofreu desde que tomou forma no século 13 e foi cristalizada por Camões (1524-1580) no 16.
O QUE PODE EXPLICAR OS ERROS |
Algumas letras em português podem representar vários sons, por isso não é raro que a escrita de certas palavras seja afetada pela pronúncia. Pelo menos entre pessoas pouco escolarizadas que as tentem escrever.
Certos desvios, por exemplo, são explicáveis pela confusão corrente entre s e z, já que o s, entre vogais (consoante fricativa alveolar sonora), soa como z: "mesa", "presente"; embora tenha em geral o valor de fricativa alveolar surda em início de sílaba ou quando duplicada (ss), como em "santa" e "massa", como lembra o Aurélio.
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A LISTA DA PERPLEXIDADE |
Entre as palavras grafadas com erro da lista do Anglo - alguns dos quais comuns e desculpáveis - há outras, indicativas de subescolaridade, como "calssada" por "calçada" e "hásilos" por "asilos". Enganos como esses poderiam ser atribuídos sem surpresa a semianalfabetos. Com surpresa, a alfabetizados. Em todo caso, indicam baixo letramento, como diz o professor Platão Savioli, do Anglo Vestibulares. O quadro relaciona todas elas, e os tópicos abaixo constituem uma tentativa de explicação das causas dos escorregões.
Ortografia vestibulanda
# a fazeres # agunisando # alguém # alí # alje # ântro # aparênte # apartir
# assima # atrás # atrazados # ausente # aviamos (havíamos) # bondoza # cadáver # calssada # cometêra # compainha # conseguiría # contasse (conta-se) # contia (continha) # correspondência # cossar # costatou # descente (decente) # discuções # disperça # dize (disse) # enfrente (em frente) # enteresse # epilepcia # esperânça # estáva # evidenciado # execultivo # experiente # famósas # faxa # fez # ficára # frequêntemente # hásilos (asilos) # hematomas # hesitão # houvir # impacto # imprecionou # imprensionou # incapacibilidade # incencível # independênte # indígna # infelismente # instântes # irônia # lânguidez # largára # lucidez # mecheu # mesmíce # milhionários # morece (morresse) # nínguem # o ciúmes # pentiar # percebí # perítos # persebido # prenchia c preoculpação # prosperizar # pudece # puni-lá # quiz # quizeram # quizesse # rabecão # recebí # reduzí-la # régras # repreende-lá # saldade # sargeta # se suicidou-se # semiterio # sentí-lo # serimonia # serteza # soliedariedade # substime # supreendi # telefône # telefônema # trajedia # tumultu # vasados # velhia (velhinha) # visinhos # visionomia # vizando
Fonte: Anglo Vestibulares
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U POR L |
Em outros casos, nota-se na escrita a confusão sonora entre l e u.
Porque o l, embora soe em início de sílaba como consoante lateral alveolar (lata; calar), às vezes soa como a semivogal w no final de sílaba, como em "jornal" e "calvo".
Na prática, soa como u - [jornau] e [cauvo] - em muitas regiões, talvez com exceção do Sul.
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C POR S OU S POR C |
O C, em geral oclusiva velar surda, soa como k, em casa, corda, curva,aclamar, criado, pacto, infeccionar, menos em:
a) soa como s (consoante fricativa alveolar surda)
b) quando seguido de e ou i (céu, cipó) ou
c) quando cedilhado (ç), antes de a, o e u (ação, aço, açúcar).
É por isso que alguns às vezes o trocam por s ou x com valor de s.
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I POR E, U POR O |
Casos de influência da confusão sonora também podem ocorrer em relação às vocais e/ie o/u.
Porque o timbre das vogais e e o, quando situadas em sílaba postônica, tende a identificar-se com o das vogais i e u: "mole" e "lento" soam [móli] e [lêntu], exemplifica o Aurélio.
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O MÚLTIPLO X |
São muito frequentes as confusões na grafia relacionadas com o uso do x, por representar diversos sons em português:
1) fricativa palatal surda (como ch): lixo, xarope;
2) fricativa dental surda (como s): auxílio, cálix;
3) fricativa dental sonora (como z): exame,existência;
4) encontro consonantal cs: axiforme, oxigênio;
5) encontro consonantal cz: hexâmetro, hexassílabo.
6) compõe dígrafo com consoante c: exceder.
São mais raros os casos acompanhados de s na mesma sílaba, quando tomam o valor dessa letra: exscrito, exsicata, exsicante, exsolver, exspuição, exstante, exstipulado, exsudar. (Exemplos do Aurélio.)
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[Fonte: www.revistalingua.uol.com.br]
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