Dez avisos para não se deixar contaminar pelas falácias retóricas do período eleitoral
A morte de Eduardo Campos, o candidato presidencial do PSB vítima de acidente aéreo em 13 de agosto, chocou o país, entrou para a história da política nacional e provocou um baque nas estratégias retóricas da campanha de 2014.
Até então, o eleitor havia-se confrontado com dinâmicas discursivas já assentadas numa disputa que vinha sendo marcada como das mais propositivas e menos autofágicas entre os recentes confrontos para o maior cargo da República. Agora, até outubro, o eleitor tem sido testemunha de uma reformulação retórica completa e brusca, não só das chapas presidenciais. Depois da tragédia, linhas discursivas começaram a ser refeitas; abordagens, mudadas, e ênfases se deslocaram.
Nunca, na campanha eleitoral deste ano, se revelou tão necessário ao eleitor estar atento para as nuances daquilo que é dito pelos políticos.
A seguir, Língua reúne o que considera 10 das maiores falácias corriqueiras em períodos eleitorais, empolações nem sempre identificáveis como tais. Para especialistas como o analista político Gaudêncio Torquato, a nova realidade da disputa presidencial vai redefinir a tônica discursiva a ser dada pelos candidatos, mas as eleições majoritárias nos estados devem repetir as retóricas que costumam marcar o período eleitoral.
- Evidentemente, a corrida eleitoral deste ano leva em conta as manifestações de rua, que empunharam a bandeira da mudança nos costumes, na economia, na educação, na mobilidade urbana. Os candidatos tentam calibrar suas falas com as demandas sociais - diz o analista.
As grandes diretrizes do discurso eleitoral tiveram de adequar-se ao cenário sem a presença de Eduardo Campos, com o apelo emocional à flor da pele rivalizando com o voto racional, avalia Torquato. O eleitor corre o risco de continuar suscetível aos apelos retóricos de outras eleições.
Para os analistas, o eleitorado amadureceu o suficiente para perceber o vazio retórico como indicador de uma manipulação deslavada, uma forma de evitar o apelo a mentiras evidentes.
- Mas o eleitor deve estar atento quando um candidato não detalha como e quando vai fazer o que promete, nem quanto vai gastar - diz Torquato.
O desenvolvimento de propostas consistentes costuma ser complicado demais. Não se consegue resumir as questões com facilidade. E há um passivo ético pressuposto em cada candidato. Nesse contexto, as propostas costumam ser flutuantes e é preciso evitar compromissos rígidos demais. Por isso, não se trata de esperar verdades em público. Mas discursos acessíveis e precisos.
Se conhecemos as artimanhas verbais que costumam rondar períodos eleitorais, quem sabe os políticos comecem a evitar os mesmos erros, sejam eles retóricos ou não.
| 1- O estilo Odorico |
Suspeite do uso de eufemismos, circunlóquios e hipérboles, aquele conjunto de expressões destinado a reduzir o impacto das palavras, como se isso diminuísse o impacto da realidade adversa ou ampliasse o efeito daquilo que favorece o político. A necessidade de "realinhamento de tarifas públicas" em lugar de "aumento de energia e gasolina" é um exemplo recente.
Assim também é recorrente a substituição da expressão, eleitoralmente impopular, de "racionamento" (de energia, de água e outros serviços públicos), que se transforma (no caso do atual racionamento de água em regiões do Sudeste) em equivalentes atenuados, como "O estado sofre desconforto hídrico", "uma estiagem histórica", "crise de mananciais".
Há a inconfessada tentativa de afirmar que a confiança no que é dito substitui ou vale tanto quanto a realidade.
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| 2- Vazio comunicativo |
O período eleitoral costuma ser dominado pela generalização vazia. O discurso movimenta palavras-chaves relacionadas à mobilidade social, à identidade coletiva, ao "momento histórico" e ao avanço.
Gaudêncio Torquato lembra que um conjunto de expressões etéreas ganha espaço em períodos eleitorais: "desafios", "esperança", "mudança", "conquistas", "continuidade", "novo", "aspirações", "povo", "família", "sonhos", "renovação", etc.
- A palavra mais recorrente no cenário atual é "mudança". Todos os slogans de candidatos presidenciais o reproduzem.
E multiplica-se uma série de construções frasais com que todos concordam, mas nada especificam: "A solução para o estado é a segurança"; "A cidade precisa de saúde"; "O futuro do país depende da educação" etc.
1) Palavras como essas têm a conveniência de soarem agradáveis ao eleitorado, sem definirem nenhum compromisso maior por parte do candidato. Já as máximas e frases, autoevidentes e anódinas, padecem de detalhes que as transformem numa proposta concreta.
2) Generalidades são úteis a candidatos porque eles ainda desconhecem ou omitem as iniciativas que esperam tomar para encarar problemas. Compromissos explícitos assumidos na campanha podem ter um preço alto a pagar durante o mandato.
Daí, a tradição política ser a de falar mais do que, de fato, se entregará. |
| 3- Criar reservas mentais |
Assentir a literalidade da afirmação, mas violar seu espírito.
Perguntado se é a favor ou contra o aborto, o candidato responde:
- Não conheço ninguém que seja a favor do aborto.
Ninguém é "a favor do aborto" no sentido que os discursos pró-vida caracterizam, mas a defesa da descriminalização do aborto não costuma colocar em jogo se as pessoas são a favor da morte deliberada de embriões.
A resposta, no entanto, permite que tudo se passe como se fosse um problema plebiscitário: contra ou a favor?
Dificilmente alguém discordaria da resposta, pouco importa se a tese anterior estivesse demonstrada.
É uma reserva mental, a não implicação lógica entre premissas e conclusão: o que é concluído pode ser verdadeiro, mas não pelos motivos alegados. A pessoa apresenta dois estados alternativos como sendo as únicas possibilidades, quando de fato existem outras.
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| 4- Driblar a obrigação de provar |
Quem afirma algo tem a obrigação de provar. É o chamado "ônus da prova". Contrariar esse princípio é algo tão frequente que uma temporada inteira do celebrado seriado político House of Cards (Netflix) foi baseado nesse expediente.
Desconfie ao menos das três maneiras mais frequentes de evitar a obrigação de oferecer evidências para sustentar um argumento.
1) Considerar óbvio que não há cabimento em questionar a afirmação.
"Ninguém em seu juízo perfeito pode ser a favor da legalização da maconha."
2) La garantia soy yo. O candidato se coloca como a garantia de correção daquilo que ele mesmo afirma.
"Estou convencido de que..."; "Sei que...", etc.
É um jogo calculado: intimida contestações e, se elas vierem, tendem a vir na forma de um ataque pessoal, que o político tirará de letra.
3) Tomar a parte pelo todo. Elaborar construções frasais em que um comportamento isolado é generalizado, um traço específico vira traço comum. O candidato afirma um comportamento como sendo "do" brasileiro. Como não está definida a quantidade de brasileiros que sustenta tal opinião, a afirmação apela a generalizações por meio de essências ("o brasileiro").
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| 5- A distorção deliberada |
É tática frequente, ainda mais sob forte polarização, como a reta final de uma campanha eleitoral, por exemplo. Distorcer ou atribuir ao oponente um ponto de vista falso sobre uma questão é uma falácia que só se combate com pesquisa por parte do eleitorado. O que raramente ocorre.
O linguista José Luiz Fiorin, de Língua, lembra que o brigadeiro Eduardo Gomes, presidenciável de 1945, declarou que não queria os votos da "malta de desocupados que frequentava os comícios de Getúlio Vargas".
Seus oponentes foram ao dicionário, retiraram a palavra "malta" (bando) do contexto e espalharam que o brigadeiro se referia aos "operários que levam suas marmitas pelas linhas férreas", os marmiteiros. Em outras palavras, equivalia a dizer que ele repugnava o voto da população de baixa renda. Gomes, então, virou um elitista aos olhos do eleitorado.
Ao exagerar, desvirtuar ou simplesmente inventar um argumento, fica mais fácil apresentar a sua posição como razoável ou válida.
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| 6- Ignorar a questão concreta |
É discorrer sobre algo paralelo à questão central, sem parecer que se muda de assunto.
- O senhor é contra ou a favor da volta da CPMF?
- Veja bem. A captação de recursos para a saúde... blá-blá-blá... e fiz mais pela saúde do que... blá-blá-blá... não se trata de onerar a carga tributária... blá-blá-blá... (Jean Lauand)
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| 7- Atacar a pergunta |
Quando o governo não tem como defender um ato governamental, reage a um pedido de CPI pela oposição, dizendo que se trata de manobra eleitoreira. Quando a oposição quer desviar a atenção sobre uma ação de governo, faz o mesmo.
No caso, questiona-se a pergunta em vez de respondê-la.
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| 8- Tirar o corpo fora |
O orador justifica um erro pela tradição ou por um equívoco similar do rival feito tempos antes. Para não levar a culpa por algo, argumenta-se que as coisas sempre foram feitas daquela maneira ou o rival cometeu o mesmo deslize.
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| 9- Questão complexa |
Uma afirmação prévia vem embutida numa pergunta ou numa outra afirmação.
"A eleitoreira política social do governo gastou milhões do Tesouro": o pressuposto é que a política social governamental é eleitoreira.
Acusado de controlar esquema de corrupção nos Correios, o então deputado Roberto Jefferson acusou em 2005 a compra de apoio parlamentar pelo governo, o "mensalão":
"José Dirceu dava aos deputados R$ 30 mil por mês. Não é absurdo? Você deixaria um camarada que rouba sair ileso?"
O oponente é implicado na questão anterior, enquanto respondemos à nova questão. "É uma ilusão de qualquer governo pensar que o PMDB possa estar unido em seu apoio": enquanto se discute se os governos se iludem ou não com o PMDB, admite-se a tese de que o partido jamais está unido na adesão a um governo. |
| 10- Efeito dominó |
É concluir de uma proposição uma série de fatos ou consequências que podem ou não ocorrer. É um raciocínio levado indevidamente ao extremo, às últimas consequências.
"O álcool e uma dieta pobre também são grandes assassinos. Deve o governo regular o que vai à nossa mesa? A perseguição à indústria de fumo pode parecer justa, mas também pode ser o começo do fim da liberdade." (Veja, agosto 2000: 36) (JLF)
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[Fonte: www.revistalingua.uol.com.br]

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