À parte o (controverso) acordo ortográfico, é a alteração dos fluxos
migratórios que mais ajudam a ampliar a presença do português no mundo.
Por Elísio Estanque
Entre o português do Brasil e o de Portugal abundam, como é sabido,
as diferenças entre expressões e palavras, sobretudo na oralidade. E não
há acordo ortográfico que possa impedi-lo.
Se a língua de Camões é a
grande referência, precisamos de saber conjugar o cânone clássico com a
criatividade inventiva das suas múltiplas pronúncias e usos (na Europa,
em África ou no Brasil), em vez de tentar impor um padrão único a todos
os seus falantes. Ao longo de um ano em que deambulei pelo Brasil,
deparei-me com múltiplas situações dúbias relacionadas com as nuances da
nossa língua comum. Seja pela diferente sonoridade das falas, seja pelo
recurso a formulações estranhas para um brasileiro, somos muitas vezes
confrontados com a súbita interjeição: “Oi?...”, que quer dizer: “o que é
que você falou?”, “não percebi nada!”. A referência à língua e aos
“sutaquis” de ambos os lados do Atlântico é o pretexto para ilustrar as
“desventuras” de um “indígena” do Alentejo quando, mergulhado em
atmosferas tropicais, faz uso de uma linguagem coloquial com o som “lá
da terrinha” (como eles dizem). E o mesmo pode ser dito a propósito de
um “brazuca” quando viaja por Portugal em busca das suas raízes
lusitanas.
Entre autocarros e ônibus, bicas e cafezinhos, comboios
e trens, elétricos e “bondjinhos”, fumantes e fumadores, raparigas e
moças, pequeno almoço e café da manhã, para além do “rato” (de
computador), que no Brasil se diz “mause” (imagine-se a minha
dificuldade quando entrei numa loja de informática e pedi um “tapete de
rato” e mais tarde descobri que teria de perguntar por um “ponto de
mause”), ou da gíria do futebol, onde o “guarda-redes” é o “goleiro”, o
“canto” é o “escanteio”, o “defesa” é o “zagueiro”, etc., etc., sem
esquecer os nomes de produtos que por cá adquiriram a designação das
respetivas marcas (como o “Ban-Aid”, que é um penso-rápido) ou, por
exemplo, o pequeno apartamento onde resido que aqui é um “kitnet”...
Entre os “caras” (sinónimo de rapaz, tipo, gajo) e o “Ki-barato” (nome
de uma lanchonete), enfim, as subtilezas linguísticas podem por vezes
atrapalhar, mas em geral tudo se resolve com risadas e curiosidades. E
em português nos entendemos.
Na poesia, no romance, na linguagem
popular e também através das gírias e calões locais, o português
readapta-se e reinventa-se, como acontece com qualquer língua viva. E
ainda bem. Quem experimente este contacto entre os modos distintos de
uso do português não deixa de se surpreender com alguns mal-entendidos,
mas eles fazem parte das pequenas dessintonias inerentes a uma língua
rica e dinâmica. Certa vez, enquanto principal organizador de um
encontro académico em Coimbra irritei-me com uma colega acabada de
chegar do Brasil que me chamou por “oi, moço!”, como é usual tratar-se
um empregado de mesa. Porém, desde que cheguei ao Brasil, no início de
2013, fui muitas vezes interpelado “do mesmo mesmo jeito” (mais um
exemplo de expressão típica de cá), por “moço”, “cara” e até “negão” –
mas também por “querido” – da parte de desconhecidos, sem que daí
transparecesse qualquer falta de respeito ou intenção maldosa. Tudo
depende do contexto.
Por outro lado, não deixa igualmente de ser
curiosa a forma como brasileiros que passaram pelo nosso país procuram
glosar a pronúncia do “português de Portugal”, imitando a sua outra sonoridade.
O relato da conversa com um taxista mal humorado em Lisboa, no seu
vernáculo de vogais fechadas e ar taciturno (ou atitude mal-educada),
pode ser um bom motivo de risota, e é sem dúvida uma ajuda, no Brasil,
ao habitual anedotário em que o patético Mané é posto a
ridículo. Muitos brasileiros estão convencidos que em Portugal toda a
gente se trata por “tu” e que o uso do “pá” é generalizado, o que por
vezes cria situações um pouco embaraçosas, como aquela em que um colega
meu (do Brasil) foi entrevistar um alto diretor administrativo em
Portugal, e logo iniciou a conversa com um “ó pá, tu sabes dizer-me se...”.
Na
verdade, o que me parece francamente ridículo é quando cada um dos dois
sotaques procura mimetizar o outro na mesma conversa. Num diálogo entre
falantes de cada um dos nossos países, é frequente o brasileiro colocar
a ênfase no “tu”, pensando que assim se torna mais português, enquanto
este usa e abusa do “você” a fim de se aproximar da fórmula brasileira.
Por mim, dei-me bem fazendo-me entender com a pronuncia de Portugal,
embora, claro, tentando usar as expressões mais ajustadas ao público
brasileiro; e quanto ao uso dos gerúndios não tive nenhum problema,
dadas as minhas raízes.
O encanto da língua reside na diversidade
das suas pronúncias e vocalidades, embora haja quem se aproveite das
diferenças para justificar erros gramaticais inaceitáveis. Porém, os
brasileiros sabem apreciar o estilo português de falar, desde que se
evite aquele rápido jargão de consoantes (“ss” e plurais) entoados com
“ch” final ou as vogais fechadas; e os portugueses podem perfeitamente
“curtir” a sonoridade cantada da pronúncia brasileira, desde que se
evite aquela língua enrolada de algumas regiões onde o “rrs” guturais se
confundem com “ggs” e resultam numa pronúncia estranha em frases como a
“pogta vegde”... Seja devido à presença de imigrantes, seja por
influência das novelas, ou, atualmente, pela crescente chegada de jovens
quadros portugueses ao Brasil, a língua portuguesa parece ganhar um
novo protagonismo no mundo. À parte o (controverso) acordo ortográfico, é
a alteração dos fluxos migratórios e a recomposição dos segmentos
sociais que hoje atravessam o Atlântico em ambas as direções, e é o
papel do Brasil na economia global, que mais ajudam a ampliar a presença
do português no mundo. Dois sotaques, uma só língua.
Docente
da Faculdade de Economia e investigador do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra; Professor visitante da UNICAMP – Brasil
[Fonte: www.publico.pt]
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