domingo, 1 de abril de 2018

O minete e a língua


Como salvar a honra da nação e justificar uma lacuna em nosso vocabulário sexual


Cena do flme "Ninfomaníaca", do diretor Lars von Trier

Escrito por Sérgio Rodrigues 

Estávamos na vila medieval de Óbidos, em Portugal, terra da ginja, para participar de um festival literário. Na roda formada por homens e mulheres de nacionalidades lusófonas diversas, o escritor angolano José Eduardo Agualusa resolveu pegar no pé de uma lacuna vocabular brasileira. 

“No Brasil não existe minete”, declarou, para espanto e indignação da ala feminina do grupo. Embora conste que em certas regiões do país a palavra não seja desconhecida, Agualusa tinha lá sua razão, como comprova o fato de que poucos leitores desta coluna saberão o que vem a ser o tal minete. 

A confusão proposital entre a palavra, que de fato não existe para a maioria dos nascidos aqui, com a coisa, que tem existência vibrante para muita gente, era parte da piada. Uma piada que exigia resposta rápida do único brasileiro presente, ou seja, eu. 

Estava em jogo nada menos que a dignidade nacional, ainda que em sua versão simbólica de jogo de salão. 

Para que a história faça sentido será preciso explicar logo o que é minete, um substantivo que, naquele momento, eu mesmo acabava de conhecer. Chega de preliminares: minete é sexo oral em mulheres. O contraponto feminino do boquete. 

Em português brasileiro, um silêncio, uma lacuna que a gozação de Agualusa diante da plateia escandalizada tornava constrangedora. Quando não uma lacuna, no máximo um daqueles substantivos informais feitos na marra com o particípio —no caso, do verbo “chupar”. Mas isso não livraria nossa cara coletiva naquela hora. 

Por que, afinal, não temos um substantivo bom e honesto para nomear ato tão relevante? Logo nós, com nossa fama —não inteiramente justa, mas insuflada por décadas de campanhas turísticas oficiais— de povo liberadão e de sexualidade à flor da pele. 

Não será verdade que a exuberância vocabular sempre acompanha o peso cultural das coisas, como sugerem os incontáveis nomes que a cachaça acumula país afora? Se for verdade, o que essa fenda pudica em nosso vocabulário revela? Em resumo: custava tanto assim termos importado “minete”? 

Seria uma mentira cômica dizer que, sendo um povo erudito, “cunnilingus” resolve a questão para nós. Além de ser pedante, feioso e de uso raro, o termo latino tem sonoridade que pode provocar certos mal-entendidos anatômicos. 

Tudo ao contrário de “minete”, um vocábulo simpático e tão popular em Portugal quanto na África lusófona. Vem do francês “minet”, ou mais provavelmente de seu feminino, “minette”. Quer dizer gatinho ou gatinha e tem sentido lúbrico por associação óbvia com a lambeção apreciada pelos bichanos. 

Caros compatriotas: naquele momento difícil, eu precisava de uma iluminação divina, nada menos que isso, e tenho o prazer de relatar que ela veio. Ponderei à pequena audiência lusófona multinacional que nem sempre a ausência de uma palavra traduz desinteresse ou falta de apreço. 

Às vezes é o contrário: por respeitar demais alguma coisa, por nos sabermos pequenos e indignos diante de sua grandeza, nos recusamos a reduzi-la a um nome. “Vejam o caso de Deus. YHWH, o impronunciável tetragrama hebraico, é um exemplo.” Não sei se colou. Fez o pessoal rir, e isso bastava.


[Fonte: www.folha.com.br]

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