sexta-feira, 15 de agosto de 2014

A Bíblia como literatura

Escrito por Érico Nogueira


Desde que Haroldo de Campos publicou suas inventivas — e controversas — traduções do Eclesiastes em 1990, abriu-se definitivamente, no Brasil, a possibilidade de ler e apreciar a Bíblia também como literatura.
O tema, contudo, é só parcialmente novo. De facto, muitas foram as literaturas laicas influenciadas de maneira decisiva pelas Sagradas Escrituras — como, por exemplo, a bizantina, que tanto deveu à tradução grega dos Setenta; a latina medieval, que praticamente orbitava à roda da Vulgata de São Jerônimo; a russa, fecundada pelo eslavônico eclesiástico; — e principalmente a alemã, a inglesa, e a neerlandesa, nas quais o texto axial, que lhes padroniza o vocabulário, a gramática e a sintaxe, é a Bíblia de Lutero, a do rei James e a Statenvertaling, respectivamente.
Influência do texto sagrado sobre os profanos, porém, não implica ler a Bíblia como se fosse literatura. Para tanto, seria necessário chegar ao laico séc. XX, no qual, sem as amarras religiosas d’antanho, poetas e ficcionistas se sentiram livres para glosar o mote bíblico ao seu bel-prazer. Se isso resultou em obras-primas como, por exemplo, José e seus Irmãos, de Thomas Mann, ou Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, abriu espaço para platitudes do naipe de O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, e a chatíssima poesia de Charles Péguy. 
Finalmente, uma nota sobre as traduções da Bíblia em português: enquanto as confissões protestantes felizmente têm à disposição a elegantíssima tradução clássica de João Ferreira de Almeida, feita a partir dos originais hebraico, aramaico e grego, as melhores traduções católicas são a de Antônio Pereira de Figueiredo e a de Matos Soares, cujo texto-base foi a Vulgata latina. Isto em si mesmo não é problema nenhum, já que a Igreja considera a Vulgata como texto inspirado. O problema começa quando, ao ler uma tradução cuidada e direta dos originais como a Bíblia de Jerusalém, por exemplo, o fiel católico, se erudito for, tem de engolir uma dosinha de mau português. Libera nos, Domine.   
[Fonte: www.terramagazine.terra.com.br]

Sem comentários:

Enviar um comentário