segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Tradutor faz boas escolhas para Shakespeare

Primeira versão poética em português de 'Vênus e Adônis' aproxima leitor da sensação de ler o texto original

AS INVERSÕES SINTÁTICAS AQUI REALIZADAS QUASE NUNCA TÊM O EFEITO DE DIFICULTAR A COMPREENSÃO DO TEXTO MAIS DO QUE SERIA DE ESPERAR NUM POEMA PORTUGUÊS DO SÉCULO 16

Escrito por PAULO HENRIQUES BRITTO

"Vênus e Adônis", poema narrativo de 1.194 versos, foi a primeira obra publicada por Shakespeare. Como em quase todas as suas criações, aqui o poeta parte de uma fonte anterior -o livro dez das "Metamorfoses" de Ovídio- porém faz uma alteração importante no enredo original: ao contrário do que se passa no poema latino, em Shakespeare o jovem caçador Adônis não sucumbe à sedução da deusa do amor, por mais que ela utilize seus recursos retóricos, louvando a beleza incomparável do mortal.

Fora essa curiosa inversão -é a fêmea que tenta seduzir o macho, e é a beleza deste, e não a daquela que é louvada- "Vênus e Adônis" pode parecer hoje um poema um tanto convencional, principalmente se comparado com as obras posteriores de Shakespeare. Porém em seu tempo foi um verdadeiro best-seller, com mais de 16 edições em menos de 50 anos.

No prefácio desta excelente tradução de Alípio Correia de Franca Neto, Ivo Barroso observa que o tradutor mantém não só o esquema de rimas do original como também a contagem de sílabas, utilizando o decassílabo, o metro português que mais se aproxima do pentâmetro jâmbico inglês.

Como se sabe, as palavras inglesas tendem a ser mais curtas que as portuguesas. Assim, se o tradutor opta por manter o número de sílabas em vez de utilizar um metro mais largo -como, por exemplo, o dodecassílabo alexandrino- ele é forçado a recorrer a uma de duas estratégias básicas.

A primeira é efetuar cortes seletivos no plano semântico-lexical: suprimir um adjetivo aqui, simplificar uma estrutura verbal ali; desse modo o tradutor se atém ao que há de mais importante no âmbito do significado, mantendo uma sintaxe mais natural e evitando contrações fonéticas radicais.

A segunda estratégia é a oposta: fazer um mínimo de omissões, mesmo que isso implique mais inversões sintáticas e reduções no plano sonoro, comprimindo várias vogais numa única sílaba.

Quando é importante manter um tom mais natural -como, no caso de Shakespeare, se dá na tradução de uma peça, em que os versos são falas, ou nos "Sonetos", em que o poeta muitas vezes dialoga com um interlocutor e zomba das convenções petrarquianas- a primeira estratégia é recomendada.

Mas em se tratando de um poema classicizante como "Vênus e Adônis", onde se esperam uma sintaxe mais artificial e muitas sinéreses (transformações de um hiato em ditongo) e sinalefas (fusões da vogal final de uma palavra com a inicial da palavra seguinte), a segunda estratégia -a usada por Alípio- é talvez a mais indicada.

Há também outra justificativa para a sua escolha: sendo esta a primeira tradução poética do "Vênus e Adônis" a ser publicada entre nós, são necessárias copiosas notas explicativas, muitas das quais se tornariam irrelevantes para o texto traduzido se o tradutor tivesse optado por suprimir material semântico.

Mesmo assim, as inversões sintáticas aqui realizadas quase nunca têm o efeito de dificultar a compreensão do texto mais do que seria de esperar num poema português do século 16. Quanto às contrações fonéticas, ainda que no início do poema o leitor possa achar forçadas algumas das fusões de sílabas, no decorrer da leitura o ouvido vai se acostumando com tais licenças e termina por aceitá-las como uma convenção como outra qualquer.

Facilita essa aceitação o fato de que em cada página nos deparamos com ao menos uma solução brilhante. Citarei apenas dois exemplos da maestria do tradutor: "Feliz falência, que em perder prospera!" (v. 466) e "Ela, temendo, freme, treme até" (v. 880).

O leitor deste "Vênus e Adônis" pode estar certo de que está tendo, em português, uma experiência bem próxima à da leitura do original inglês -o que é o maior elogio que se pode fazer a uma tradução de poesia.

PAULO HENRIQUES BRITTO é poeta, ensaísta e professor na PUC-Rio.

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