Primeira versão poética em português de 'Vênus e Adônis' aproxima leitor da sensação de ler o texto original
AS INVERSÕES SINTÁTICAS AQUI REALIZADAS QUASE NUNCA TÊM O EFEITO DE
DIFICULTAR A COMPREENSÃO DO TEXTO MAIS DO QUE SERIA DE ESPERAR NUM POEMA
PORTUGUÊS DO SÉCULO 16
Escrito por PAULO HENRIQUES BRITTO
"Vênus e Adônis", poema narrativo de 1.194 versos, foi a primeira obra
publicada por Shakespeare. Como em quase todas as suas criações, aqui o
poeta parte de uma fonte anterior -o livro dez das "Metamorfoses" de
Ovídio- porém faz uma alteração importante no enredo original: ao
contrário do que se passa no poema latino, em Shakespeare o jovem
caçador Adônis não sucumbe à sedução da deusa do amor, por mais que ela
utilize seus recursos retóricos, louvando a beleza incomparável do
mortal.
Fora essa curiosa inversão -é a fêmea que tenta seduzir o macho, e é a
beleza deste, e não a daquela que é louvada- "Vênus e Adônis" pode
parecer hoje um poema um tanto convencional, principalmente se comparado
com as obras posteriores de Shakespeare. Porém em seu tempo foi um
verdadeiro best-seller, com mais de 16 edições em menos de 50 anos.
No prefácio desta excelente tradução de Alípio Correia de Franca Neto,
Ivo Barroso observa que o tradutor mantém não só o esquema de rimas do
original como também a contagem de sílabas, utilizando o decassílabo, o
metro português que mais se aproxima do pentâmetro jâmbico inglês.
Como se sabe, as palavras inglesas tendem a ser mais curtas que as
portuguesas. Assim, se o tradutor opta por manter o número de sílabas em
vez de utilizar um metro mais largo -como, por exemplo, o dodecassílabo
alexandrino- ele é forçado a recorrer a uma de duas estratégias
básicas.
A primeira é efetuar cortes seletivos no plano semântico-lexical:
suprimir um adjetivo aqui, simplificar uma estrutura verbal ali; desse
modo o tradutor se atém ao que há de mais importante no âmbito do
significado, mantendo uma sintaxe mais natural e evitando contrações
fonéticas radicais.
A segunda estratégia é a oposta: fazer um mínimo de omissões, mesmo que
isso implique mais inversões sintáticas e reduções no plano sonoro,
comprimindo várias vogais numa única sílaba.
Quando é importante manter um tom mais natural -como, no caso de
Shakespeare, se dá na tradução de uma peça, em que os versos são falas,
ou nos "Sonetos", em que o poeta muitas vezes dialoga com um
interlocutor e zomba das convenções petrarquianas- a primeira estratégia
é recomendada.
Mas em se tratando de um poema classicizante como "Vênus e Adônis", onde
se esperam uma sintaxe mais artificial e muitas sinéreses
(transformações de um hiato em ditongo) e sinalefas (fusões da vogal
final de uma palavra com a inicial da palavra seguinte), a segunda
estratégia -a usada por Alípio- é talvez a mais indicada.
Há também outra justificativa para a sua escolha: sendo esta a primeira
tradução poética do "Vênus e Adônis" a ser publicada entre nós, são
necessárias copiosas notas explicativas, muitas das quais se tornariam
irrelevantes para o texto traduzido se o tradutor tivesse optado por
suprimir material semântico.
Mesmo assim, as inversões sintáticas aqui realizadas quase nunca têm o
efeito de dificultar a compreensão do texto mais do que seria de esperar
num poema português do século 16. Quanto às contrações fonéticas, ainda
que no início do poema o leitor possa achar forçadas algumas das fusões
de sílabas, no decorrer da leitura o ouvido vai se acostumando com tais
licenças e termina por aceitá-las como uma convenção como outra
qualquer.
Facilita essa aceitação o fato de que em cada página nos deparamos com
ao menos uma solução brilhante. Citarei apenas dois exemplos da maestria
do tradutor: "Feliz falência, que em perder prospera!" (v. 466) e "Ela,
temendo, freme, treme até" (v. 880).
O leitor deste "Vênus e Adônis" pode estar certo de que está tendo, em
português, uma experiência bem próxima à da leitura do original inglês
-o que é o maior elogio que se pode fazer a uma tradução de poesia.
PAULO HENRIQUES BRITTO é poeta, ensaísta e professor na PUC-Rio.
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