Pasquale Cipro Neto: Juridiquês?
Ufa! Parece que a novela dos "embargos infringentes" acabou. Uma das
coisas que mais se ouviram nos últimos dias foi a (im)pertinência da
linguagem dos ministros do STF. Um dos alvos particulares da discussão
foi justamente a expressão "embargos infringentes". Discutiu-se até
sobre o número gramatical dessa expressão ("embargo infringente" ou
"embargos infringentes"?).
Há alguns anos, corri o país ao lado de importantes figuras da nossa
magistratura (os juízes Andrea Pachá e Rodrigo Collaço, entre outros)
para pregarmos o fim do juridiquês. Proferi palestras em diversas
faculdades de Direito para tentar mostrar aos estudantes a inadequação
do emprego de certos termos ou expressões ainda comuns em petições e
demais documentos.
Quer um belo exemplo? Lá vai: "Com supedâneo no artigo". Sabe o que é
esse trem, caro leitor? Nada mais do que "com base no artigo".
A proposta dessa campanha (da ABM -Associação dos Magistrados
Brasileiros) não era demagoga ou populista, ou seja, não tinha a
intenção de negar a importância dos termos técnicos e da necessidade de
rigor. A ideia era simplesmente combater o ridículo, ou seja, a
linguagem rebarbativa, pedante, caricata. Em outras palavras, não se
propunha a supressão ou a "tradução" de termos como "peculato",
"prevaricação", "medida cautelar" etc. Propunha-se, sim, o fim do
ridículo.
Pois bem. Não vou me meter a entrar no âmbito técnico da expressão
"embargos infringentes", mas (creio) posso traduzi-la à luz da
morfologia e da semântica.
O cidadão medianamente informado certamente já leu ou ouviu algo como
"tal obra foi embargada". Falou-se disso recentemente quando desabou um
edifício em construção no bairro paulistano de São Mateus. "Embargo" é o
que "embarga", ou seja, o que obsta, impede, opõe obstáculo. Quando um
fiscal de uma prefeitura embarga uma obra, impede, proíbe, não permite o
seu prosseguimento.
E "infringente"? Ao pé da letra, é o que infringe. "Infringe" é forma do
verbo "infringir", que significa "desrespeitar", "violar",
"desobedecer", "transgredir". O "ato de infringir" se chama... Bem, no
país do respeito quase zero às leis de trânsito é difícil imaginar que
alguém não saiba que o ato de infringir é "infração".
Os dicionários e os manuais de direito definem "embargo infringente"
como "recurso que se opõe a acórdão, objeto de decisão não unânime,
proferida em apelação ou ação rescisória" ("Houaiss") ou como "recurso
cabível quando não for unânime o julgado proferido em apelação e em ação
rescisória" ("Glossário de Termos Jurídicos", da Procuradoria da
República na Bahia).
Bem, caro leitor, se o termo jurídico é "embargos infringentes", não se
pode questionar o seu emprego em ambientes específicos, e, ao que
parece, é esse o caso do STF. Sobra aos que não são da área a
possibilidade de (tentar) entender o significado desse e de outros
termos, o que nem de longe equivale ao ridículo produzido pelo emprego
de bobagens como "com supedâneo no artigo".
Certa vez, um dos meus filhos foi operado. Um dos médicos que
participariam da cirurgia me disse esta maravilha: "Não se preocupe. O
seu filho é uma criança eutrófica". Não lembro o que lhe disse, mas
minha resposta deixou claro que eu entendera o que é "eutrófica" ("bem
nutrida", "bem desenvolvida"). Sabe o que ele me disse em seguida? "O
senhor é colega?" E eu: "Não. Sou professor de português". A pergunta
dele evidenciou a (sua) percepção de que havia empregado linguagem
inadequada à situação. Devagar com o andor. Cada caso é um caso. É isso.
Pasquale Cipro Neto
[Fonte: www.folha.com.br]
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