Após o 'Livro do desassossego – antologia essencial', a editora Shantarin lança mais uma seleção de textos do poeta, 'O sábio árabe'.
Escrito por João Céu e Silva
De Fernando Pessoa têm saído livros de todo o género, no entanto, acaba de ser publicado um que não é mais do mesmo: O sábio árabe. No mínimo, é curioso saber-se o que o poeta pensava sobre a cultura árabe, e este volume dedica-se a essa seleção, conforme o responsável pela edição, Fabrizio Boscaglia, refere na introdução: «O livro nasce com o objetivo de mostrar o que Fernando Pessoa, poeta-pensador da multiplicidade, escreveu e pensou sobre uma civilização que se baseia na religião da absoluta unidade divina: o islão».
Uma dúvida óbvia que surge sobre O sábio árabe é até que ponto Pessoa teria na atualidade a opinião que expressa nestes textos sobre a civilização islâmica ou se o violento confronto - o alegado choque de civilizações - das últimas décadas faria com que pensasse diferentemente. Para Boscaglia é impossível imaginar o que Pessoa pensaria hoje, no entanto, diz, «o poeta estava ciente de que conflitos entre o chamado Ocidente e o mundo islâmico tinham marcado as mentalidades durante séculos, nomeadamente em Portugal. Tal não lhe impediu, contudo, de desenvolver uma ideia da civilização arábico-islâmica enquanto não necessariamente inimiga, aliás, enquanto algo íntima e fraternalmente relacionada com a própria portugalidade.»
Estando o orientalismo na «moda» no tempo em que Fernando Pessoa viveu, questiona-se até que ponto terá sido influenciado pelos viajantes ocidentais e o que diziam da civilização islâmica nas suas leituras. À pergunta, Boscaglia responde: «É verdade, contudo Pessoa parece ter uma autoconsciência do (seu) próprio orientalismo, que aborda inclusivamente de forma (auto)irónica em alguns textos. Portanto, temos de considerar o orientalismo como um elemento do estudo crítico de Pessoa, sem dúvida, mas também de contemplar uma ideia não apenas orientalista do islão e do al-Andalus, que Pessoa cultivou.
Dever-se-á,
então, questionar se o legado islâmico foi fundamental para a obra do poeta? Para o estudioso de Pessoa, a resposta é clara: «Na medida em que o legado islâmico é uma das raízes
incontornáveis da cultura portuguesa e universal, sim, mas tal vale também para
muitos outros intelectuais portugueses e contemporâneos. Pessoa, graças ao seu
génio e à sua influência, permite-nos, em Portugal e não só, colocar novamente
esta raiz cultural universal no centro do debate e da atualidade».
Não é só o poeta português que considera que a Península Ibérica deve muito à civilização árabe. Essa era uma opinião que ganhou importância, explica, «porque é uma ideia que, sobretudo a partir da Geração de 70 - à qual Pessoa foi «beber» muito - e com o brotar da Renascença Portuguesa e do Modernismo - sem esquecer ecos românticos nestas fases - circula, em período finissecular e republicano, até ao Estado Novo, que regressa a uma narrativa vincadamente cruzadista. «Não será por acaso que Pessoa renega que a sociedade ibérica descenda especificamente da cultura latina e considera que é o cruzamento da romana e da árabe e que esta realidade permanece até ao seu tempo. Para Fabrizio Boscaglia a «cultura ibérica é o produto dinâmico de várias heranças, entre as quais a grega, a latina, a judaica, a cristã, a islâmica e outras», no entanto «Pessoa tinha uma clara consciência disso quando escreveu que «a alma árabe é o fundo da alma portuguesa».
Para o investigador, esta recolha de textos sobre a influência da cultura árabe não mostra que o poeta seja demasiado conciliatório quando refere que «a tolerância e o pluralismo religioso no al-Andalus permitiu longos períodos de convivência pacífica entre judeus, cristãos e muçulmanos». Boscaglia aponta para factos históricos sobre os quais Pessoa refletiu e considera que, «sem banalizar ou romantizar a questão, a liberdade de culto instituída pelos muçulmanos na Idade Média – entre altos e baixos – é um facto culturalmente muito marcante, significativo e de viragem na história mediterrânica, ibérica e eurasiática. Pessoa reparou nisso com algum entusiasmo e refletiu sobre elementos factuais de uma história do mundo em que, mesmo numa complexidade por vezes desafiante, existem nas várias culturas forças sintéticas, tolerantes e espirituais, das quais ele se sente um depositário e um vate».
Entre os trechos mais polémicos de Pessoa, pode dizer-se que está um sobre as Descobertas impulsionadas por D. Henrique e que, afirma, se devem em muito «à ingerência árabe que orientou a alma do Infante». O responsável da edição concorda: «O facto de cientistas muçulmanos medievais terem desenvolvido ciência e técnica que influíram de forma decisiva na época das grandes navegações ibéricas e portuguesas já se encontra muito estudado. Entre outros, podemos mencionar o historiador português António Dias Farinha e a investigadora Eva-Maria Von Kemnitz. Ferramentas como o astrolábio, por exemplo, foram aperfeiçoadas por cientistas muçulmanos, entre os quais mulheres.»
Menos polémica é a opinião de Fernando Pessoa sobre o iberismo, como explica Boscaglia: «Pessoa, tendencialmente, não queria unir Espanha e Portugal. Queria uma confederação, baseada num substrato psicocultural comum entre as nações ibéricas. Substrato em que o legado do al-Andalus é um elemento dinâmico, identitário e culturalmente significativo.»
[Fonte: www.dn.pt]


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