terça-feira, 28 de julho de 2020

Colocando os pingos nos yy:




Escrito por Eduardo Affonso

“Despiorar” existe.

É verbo transitivo e intransitivo, e significa tornar ou ficar menos mau (ou menos mal). É o mesmo que melhorar.

“Desmelhorar” também existe.

É transitivo quando no sentido de impedir o melhoramento, intransitivo na acepção de tornar pior.

Quando uma coisa piora menos do que vinha piorando, há quem diga que começou a melhorar. E quem prefira dizer que está despiorando. Questão de copo meio cheio ou meio vazio.

Existe também “desconcordar”, que é quando você apenas não concorda, sem, entretanto, discordar. Lamentavelmente, “desdiscordar” não existe – ou você dá o braço a torcer ou fica quieto.

O antônimo de “amor” pode não ser ódio ou indiferença, mas “desamor”. Desamor é uma indiferença magoada, levemente ressentida, sem ânimo para ser ódio. Não chega a ser desprezo; é só uma desafeição. Um destesão.

É para isso que o prefixo “des” existe: para para indicar ação contrária. Mentir, desmentir. Fazer, desfazer. Carregar, descarregar. É bonito usá-lo porque (filósofos me ajudem nesta hora!) é uma negação que traz a afirmação dentro de si.

Desconhecer não é o mesmo que ignorar. Desiludir não é o mesmo que frustrar.

Nos dicionários até pode ser. Mas isso só para quem acredita em sinônimos.

Sinônimo quer dizer semelhante, não idêntico.

Mas nada é idêntico. “Só nós somos iguais a nós próprios”, escreveu o Fernando Pessoa, que era tão dessemelhante de si mesmo a ponto de se estilhaçar em tantos eus.

Taí outra palavra linda: “dessemelhante”. Tão bonita quanto “díspar” (sem par), e a gente a usa tão pouco.

Triste Bahia! Ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

Esse era o Gregório de Matos, mas lá no século 17, quando o barroco pedia mais e mais antíteses, dualidades, contradições e paradoxos (como uma palavra trazer dentro da barriga aquela que pretendia matar).

Para entender “despiora”, pode-se também lembrar que “desinfeliz” não é alegre: é mais que infeliz. “Desinquieto” é bem mais que inquieto, não o inerte.

“Despiora” – intuo –  pode ser uma melhora a contragosto. Uma melhora indigna da sua etimologia (“melhor” quer dizer “mais forte”, o que é diferente de “menos fraco”).

Essa talvez não seja uma questão linguística, mas filosófica. Ou só acessível por meio da poesia.

Sugiro começar com Camões:

“Amor com brandas mostras aparece:
Tudo possível faz, tudo assegura;
Mas logo no melhor desaparece.
Estranho mal! Estranha desventura!
Por um pequeno bem, que desfalece,
Um bem aventurar, que sempre dura!“
Ou, sem as dicotomias do aparece / desaparece, bem aventurar e desventura,  com Aldir Blanc: “Pior que a morte é desviver”.
Quando começar a desmelhorar, a gente retoma o tema.

[Fonte: www.eduardoaffonso.com]

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