Escrito por Eduardo Affonso
“Despiorar” existe.
É verbo transitivo e intransitivo, e significa tornar ou ficar menos mau (ou menos mal). É o mesmo que melhorar.
“Desmelhorar” também existe.
É transitivo quando no sentido de impedir o melhoramento, intransitivo na acepção de tornar pior.
Quando uma coisa piora menos do que vinha piorando, há quem diga que começou a melhorar. E quem prefira dizer que está despiorando. Questão de copo meio cheio ou meio vazio.
Existe também “desconcordar”, que é quando você apenas não concorda, sem, entretanto, discordar. Lamentavelmente, “desdiscordar” não existe – ou você dá o braço a torcer ou fica quieto.
O antônimo de “amor” pode não ser ódio ou indiferença, mas “desamor”. Desamor é uma indiferença magoada, levemente ressentida, sem ânimo para ser ódio. Não chega a ser desprezo; é só uma desafeição. Um destesão.
É para isso que o prefixo “des” existe: para para indicar ação contrária. Mentir, desmentir. Fazer, desfazer. Carregar, descarregar. É bonito usá-lo porque (filósofos me ajudem nesta hora!) é uma negação que traz a afirmação dentro de si.
Desconhecer não é o mesmo que ignorar. Desiludir não é o mesmo que frustrar.
Nos dicionários até pode ser. Mas isso só para quem acredita em sinônimos.
Sinônimo quer dizer semelhante, não idêntico.
Mas nada é idêntico. “Só nós somos iguais a nós próprios”, escreveu o Fernando Pessoa, que era tão dessemelhante de si mesmo a ponto de se estilhaçar em tantos eus.
Taí outra palavra linda: “dessemelhante”. Tão bonita quanto “díspar” (sem par), e a gente a usa tão pouco.
“Triste Bahia! Ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.”
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.”
Esse era o Gregório de Matos, mas lá no século 17, quando o barroco pedia mais e mais antíteses, dualidades, contradições e paradoxos (como uma palavra trazer dentro da barriga aquela que pretendia matar).
Para entender “despiora”, pode-se também lembrar que “desinfeliz” não é alegre: é mais que infeliz. “Desinquieto” é bem mais que inquieto, não o inerte.
“Despiora” – intuo – pode ser uma melhora a contragosto. Uma melhora indigna da sua etimologia (“melhor” quer dizer “mais forte”, o que é diferente de “menos fraco”).
Essa talvez não seja uma questão linguística, mas filosófica. Ou só acessível por meio da poesia.
Sugiro começar com Camões:
“Amor com brandas mostras aparece:
Tudo possível faz, tudo assegura;
Mas logo no melhor desaparece.
Tudo possível faz, tudo assegura;
Mas logo no melhor desaparece.
Estranho mal! Estranha desventura!
Por um pequeno bem, que desfalece,
Um bem aventurar, que sempre dura!“
Por um pequeno bem, que desfalece,
Um bem aventurar, que sempre dura!“
Ou, sem as dicotomias do aparece / desaparece, bem aventurar e desventura, com Aldir Blanc: “Pior que a morte é desviver”.
Quando começar a desmelhorar, a gente retoma o tema.
[Fonte: www.eduardoaffonso.com]
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