terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Aristides e Salazar voltam a encontrar-se em tribunal


A acusação é forte. E não há memória de um tribunal português ter tido necessidade de a julgar. Descendentes de Aristides de Sousa Mendes acusam seguidores de Salazar de negacionismo do Holocausto.



Escrito por João Pedro Henriques
Até 2014, a vingança de Salazar sobre Aristides de Sousa Mendes parecia que iria durar para sempre. Ela estava bem à vista em duas vilas de Viseu. Em Santa Comba Dão, onde o ditador nasceu e está enterrado, a sua memória estava no essencial preservada e os esforços nesse sentido prosseguiam. Mas em Cabanas de Viriato, a escassos 23,5 quilómetros, a Casa do Passal, que foi da família Sousa Mendes até 1950 - quando foi vendida para saldar dívidas -, não passava de uma imponente ruína. Algo que remetia diretamente para os últimos 14 anos de vida do cônsul.
A ruína. Foi esse o preço que o diplomata pagou por, em junho de 1940, ter assinado no consulado português em Bordéus (França) milhares de vistos a judeus europeus que fugiam ao nazismo e que tentavam, através de Portugal (país neutro), chegar às Américas. Aristides de Sousa Mendes (1885-1954) fê-lo violando conscientemente ordens em sentido contrário vindas de Lisboa (Salazar era simultaneamente presidente do Conselho e ministro dos Negócios Estrangeiros). Tais ordens estavam inscritas na Circular 14, emitida em 11 de novembro de 1939, determinando esta, em síntese, que não podiam ser passados vistos sem autorização prévia de Lisboa a várias categorias de pessoas, entre as quais "os judeus expulsos dos países da sua nacionalidade ou daqueles de onde proveem". Pelo que fez em Bordéus, o cônsul foi alvo de um processo disciplinar que, na prática, implicou o seu afastamento vitalício da carreira consular. Morreu indigente em 1954, com 68 anos, internado num hospital de Lisboa.

Em 2014, a Casa do Passal começou a ser recuperada, com dinheiros da União Europeia e do Estado, e já não é uma ruína - longe disso. Só que, ao mesmo tempo, admiradores de Salazar insistiam em ir colocando no espaço público uma narrativa que diminuía a obra humanitária do cônsul, pondo-a por exemplo à conta de necessidades venais. Uma narrativa que diz também que a reabilitação de Sousa Mendes visou no essencial denegrir Salazar.

Esse confronto está agora em tribunal. Por interpostos herdeiros - de sangue ou herdeiros políticos -, o cônsul e o ditador preparam-se para regressar aos acontecimentos de 1940. Ambas as partes têm armas iguais: as que o sistema de justiça lhes proporciona.

Os autores da queixa são quatro netos do cônsul: António Pedro, Guy Gerald, Sheila Pierce e Aristides. E os réus da Texto Principal (editora proprietária do semanário O Diabo), Duarte Branquinho e Miguel Mattos Chaves (ambos ex-diretores daquele jornal), Carlos Fernandes (um embaixador reformado) e João Brandão Ferreira (coronel reformado). A estes os queixosos pedem, ao todo, 150 mil euros de indemnização cível.

As acusações

Basicamente, os queixosos avançaram para tribunal por estarem cansados de ver referências públicas ao avô diminuindo-lhe a ação de Bordéus. Mas não só. A certa altura, misturada nessa narrativa, surgiu uma outra: a que ecoava suspeita de que descendentes de Sousa Mendes haviam desviado para proveito próprio verbas públicas destinadas à reabilitação da memória do cônsul e à reabilitação da Casa do Passal. Ou seja: os queixosos defendem o avô mas não só: defendem-se também a eles próprios.

O historial das publicações dos "herdeiros" de Salazar é longo, inclui textos e entrevistas que O Diabo publicou a partir de 2004, pelo menos um livro (O Cônsul Aristides de Sousa Mendes - A Verdade e a Mentira, do embaixador Carlos Fernandes), além de textos na blogosfera.

O rol das acusações não é curto (ofensa à memória de pessoa falecida e difamação, por exemplo). Mas inclui também um crime de que não há memória de ter sido alguma vez julgado em Portugal: negacionismo do Holocausto. Este está previsto no artigo 240.º do Código Penal e prevê uma pena de prisão de seis meses a cinco anos para quem, publicamente, proceder à "apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade".

Essa acusação - que agora o tribunal terá de dirimir, julgando-a ou não - surge porque os réus terão desvalorizado a ação de Sousa Mendes em junho de 1940 em Bordéus com o argumento de que, nessa altura, os judeus não estavam verdadeiramente em perigo.

"Aristides não salva ninguém da morte"

Uma entrevista que Carlos Fernandes deu em julho de 2013 a O Diabo tornou-se uma peça central da acusação. Nela o embaixador afirmou, por exemplo, que "só em 1942, na conferência de Wansee, é que é decretada a solução final contra os judeus e começa a perseguição". Até aí, "não é que os tratassem bem antes, mas não os punham em campos de concentração". Portanto, "Aristides não salva ninguém da morte, porque em 1940 ninguém estava em risco de vida". E, além disso, "não deu vistos de graça a ninguém porque precisava do dinheiro" [o processo disciplinar de que o cônsul foi depois alvo no MNE não deu como provado que tenha havido extorsão sobre os judeus em fuga, pelo contrário, e essa é também uma peça central agora dos queixosos no processo que intentaram].

Então porquê a fuga dos judeus? Porque estes tinham começado "a fugir da Áustria em 1938, depois do Anschluss, quando o Hitler toma a Áustria com o apoio de toda a gente, exceto dos judeus e da casa real austríaca". "Há uma debandada geral dos judeus austríacos na sua maioria pobres, que querem emigrar, porque passam a ser alemães juridicamente e não querem ficar sob o Hitler. Portugal tinha um acordo de supressão de vistos com Alemanha desde 1926. Como os judeus austríacos passam a ser alemães e há uma debandada, os países da Europa quiseram pôr um termo a essa debandada e condicionaram os vistos a autorização. Mas isto durou pouco, porque depois veio a guerra. Mas o Hitler só invade a Europa ocidental em maio de 1940, quando há uma nova debandada dos judeus."

Na mesma entrevista, Carlos Fernandes vai ao ponto de pôr em equiparação Hitler e o cônsul português em Bordéus, bem como judaísmo e racismo. Questionado sobre o que achava do Führer, respondeu: "Um homem inteligente mas louco. Era artista, pintava muito bem, e cultíssimo, mas doido. Meteu-se-lhe o racismo na cabeça, como o Sousa Mendes o judaísmo. É muito parecido." Já Aristides de Sousa Mendes - que terá conhecido pessoalmente - "era um homem magnífico, devia ser o homem mais generoso do mundo, mas isso já é um pouco de louco. Era generoso demais sem ter dinheiro para isso, ainda por cima com tantos filhos [14]". Além do mais estava manipulado por um rabi, Kruger, "que fez dele o que quis" e que lhe "meteu o judaísmo na cabeça e a perseguição dos judeus", algo que Aristides passaria a ver "por todo o lado".

Quantos judeus beneficiaram dos vistos do cônsul português? Os números não são claros, até porque um visto poderia servir para várias pessoas da mesma família. Fala-se de números que vão de quatro mil pessoas a trinta mil. Israel fez as suas contas e no deserto do Neguev mandou plantar uma Floresta Aristides de Sousa Mendes com uma árvore por cada vida salva: dez mil ao todo.

Beyond Duty (Além do Dever). Este é o título da exposição, atualmente em exibição na sede da ONU em Nova Iorque, onde se presta tributo a Aristides de Sousa Mendes e a outros sete diplomatas internacionais, considerados "Justos entre as Nações" pelo Centro Mundial de Memória do Holocausto, Yad Vashem, por terem ajudado a salvar milhares de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Quando a exposição foi aberta ao público, no final de janeiro, António Guterres, secretário-geral da ONU, sublinhou a necessidade de os diplomatas porem acima das necessidades de obediência hierárquica o imperativo da defesa dos direitos humanos. Os diplomatas, disse, "têm o dever moral de aplicar o Estado de direito" e "os valores democráticos" e de defender, "com compaixão", todos os seres humanos. A comunidade internacional deve "manter fresca" a memória do Holocausto, tal como as memórias que as vítimas nunca vão esquecer, disse António Guterres, apelando também para que as instituições de direitos humanos e de educação sirvam a comunidade judaica e toda a população mundial. Na mesma cerimónia, o embaixador Francisco Duarte Lopes, representante de Portugal na ONU, falou da incerteza que predomina sobre a atividade diplomática.

[Fonte: www.dn.pt]

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