Aposta é conquistar um mercado mais amplo do que o
dos fãs
Escrito por Diogo Bercito
Um grupo de tradutores brasileiros
tem se reunido nos últimos meses para tomar difíceis decisões. Apelidados em
seu grupo de WhatsApp como "O Conselho dos Magos", tiveram de
escolher, por exemplo, se o plural da palavra "anão" é
"anões" ou "anãos". Também precisaram eleger entre
"orcs" e "orques".
São detalhes, mas com repercussões
em longo prazo. Com o plano da editora HarperCollins de publicar toda a obra do
britânico J. R. R. Tolkien no país, as palavras vão aparecer em dezenas de
livros. O projeto, inaugurado neste dia 30 com o lançamento do inédito "A
Queda de Gondolin", deve levar ao menos sete anos.
Mesmo os clássicos "O Senhor
dos Anéis" e "O Hobbit", que já estavam disponíveis em
português, serão retraduzidos. Ambos são best-sellers e agregam uma massa de
fãs exigentes, atentos às grafias.
"O Senhor dos Anéis",
vertido para o português pela última vez em 1994, é uma das obras de fantasia
mais famosas do mundo e inspirou a premiada trilogia de filmes lançada nos anos
2000. Influenciou ainda outros sucessos como "Harry Potter" e
"Game of Thrones" —a Amazon prepara nova
série baseada no universo de Tolkien, morto em 1973.
"A ideia é que toda a obra
dele saia no Brasil", diz o tradutor Reinaldo José Lopes,
colaborador deste jornal e tradutor de "A Queda de Gondolin".
"Tudo, tudo", diz. Na comunidade de WhatsApp ele se apelidou
Radagast, nome do mago que habita as florestas mágicas. Lopes mora em São
Carlos, no interior de São Paulo.
Em ilustração de "A Queda de
Gondolin", o deus Ulmo aparece diante de Tuor
Tudo inclui, além de "O
Senhor dos Anéis", clássicos como "Silmarillion" e "Contos
Inacabados". O pacote tem, ainda, ensaios e cartas de Tolkien. A surpresa,
no entanto, é a série de 12 livros "História da Terra Média", nunca
antes vista em língua portuguesa.
O catatau, lido só pelos fãs mais
dedicados, que puderam acessar o texto em inglês, narra diversas versões
—algumas delas conflitantes— sobre o complexo mundo onde se passam as
histórias de Tolkien.
"A Queda de Gondolin",
publicado neste dia 30, simultaneamente em todo o mundo, serve como uma espécie
de prévia do "História". O livro pinça diversos trechos da epopeia da
cidade de Gondolin, originalmente compilados naqueles 12 volumes. A edição foi
feita por Christopher Tolkien, filho do autor, que já tinha lançado outras
obras com recortes comentados. "Um dos charmes é esse, o de dar um
gostinho de vários volumes do 'História'", afirma Lopes.
Mas "A Queda de
Gondolin" é apenas uma espécie de prelúdio para o que está por vir. O
grande projeto é traduzir outra vez o épico megamilionário "O Senhor dos
Anéis", que atinge um público mais amplo e mais cativo.
Não é que a tradução anterior
fosse ruim, explica Lopes, que descreve o grupo de WhatsApp como um "think
tank" informal. Mas o texto dos anos 1990 não captura a gama de variações
linguísticas presentes no original. As pequenas criaturas conhecidas como
"hobbits", por exemplo, falam em uma linguagem rural do final do
século 19, com gírias populares. Já os elfos usam uma variação mais formal,
"meio shakespeariana".
"Na tradução que tínhamos,
isso ficou um pouco achatado. Parece ser a mesma coisa. Nossa ideia é retornar
a essa variação linguística e refletir mais de perto a língua do Tolkien",
diz o tradutor Lopes. Tolkien era, afinal, um respeitado filólogo e
foi professor da Universidade de Oxford.
Entre as qualificações para a
tarefa, Lopes é mestre e doutor em Tolkien. Ele é daqueles fãs das antigas,
frequentador dos populares fóruns de discussão dos anos 1990 e 2000.
"Sentia falta de não
encontrar algo próximo à beleza literária do texto em inglês. Meu desafio é o
de mostrar o valor literário dessa obra."
É um desafio mesmo. Tolkien criou
uma série de neologismos dentro do seu universo de fantasia, alguns bastante
difíceis de levar ao português.
Os tradutores tentam chegar a
consenso em seus grupos online. "Ficamos batendo cabeça para encontrar
soluções", diz Lopes. Ele decidiu, por exemplo, só usar palavras que
entraram no português até o século 17. "Não é muito fácil, mas é
divertido."
Os fãs que fiquem avisados:
algumas das palavras com que se acostumaram na tradução anterior serão
repensadas.
O plural de "anão" vai
ser "anãos", em vez de "anões" —para fazer jus à opção de
Tolkien de grafar "dwarves" em vez do consagrado "dwarfs".
"É estranho, mas cria a mesma estranheza do original", diz. Os
asquerosos "orcs" serão "orques". "Vai dar um rolinho,
já estou esperando", afirma.
Com essas novas traduções, a
editora HarperCollins aposta em um mercado que seja mais amplo do que o dos
fãs.
Clássicos como "O Senhor dos
Anéis" e "O Hobbit", acostumados às listas dos mais vendidos
como um elfo está habituado à floresta, não devem enfrentar obstáculos no
mercado. Mas a ideia de publicar a obra completa de Tolkien em português é mais
ousada.
Alguns dos livros, como os 12
volumes de "História da Terra Média", devem a princípio interessar a
fãs e a estudiosos de literatura fantástica, escapando de um público amplo.
Mas o gerente editorial Samuel
Coto diz que o plano de mercado da HarperCollins já prevê isso. Nas contas, a
empresa olha para a obra completa como um conjunto em que um livro segura o
outro.
"O 'História' não
necessariamente dá o mesmo retorno financeiro. Mas, em um contexto maior,
auxilia na consolidação dos outros livros. Por exemplo, tornando Tolkien mais
acessível no ambiente acadêmico, já que é uma coletânea fundamental para quem
quiser estudar o autor."
Coto também acredita que, com a
publicação de todos os livros, a editora pode ampliar o público. Tolkien,
afirma, tem valor literário por si e não deveria depender de um nicho —nem de
quem chegou à obra pelos filmes, nos anos 2000.
"No Brasil, mais do que em
outros países, Tolkien é considerado uma coisa do público 'geek'", diz
Coto, usando um termo que se refere aos aficionados por fantasia e ficção
científica. "Mas fui criado nos Estados Unidos e, por exemplo, li os
livros dele no ensino médio. Era literatura, e ponto final."
A Queda de
Gondolin
Autor: J. R. R. Tolkien. Trad.:
Reinaldo José Lopes. Ed. HarperCollins. R$ 59,90 (288 págs.)
NOVOS TERMOS
Anões / Anãos
O plural de "anão"
costuma ser "anões" em português. Mas a nova tradução irá manter a
palavra como "anãos". É estranho também no original, em
que Tolkien preferiu escrever o plural "dwarves" em vez do
consagrado "dwarfs".
Orcs / Orques
A antiga tradução de "O
Senhor dos Anéis" usava o plural "orcs", como em inglês. Agora
ele vai ser aportuguesado para "orques".
Troll / Trol
Os gigantes conhecidos como
"trolls" no original em inglês agora perdem um "l" em
português, virando apenas "trols". Faz mais sentido, linguisticamente.
CÂNONE
HarperCollins promete publicar a
obra completa de Tolkien nos próximos 7 anos; veja alguns dos títulos
“A Queda de
Gondolin” (inédito)
Primeiro livro do projeto sai
neste dia 30, em lançamento mundial. Conta a história da queda da cidade de
Gondolin, central no universo de Tolkien
“História
da Terra Média” (inédito no Brasil)
Uma coletânea de 12 volumes
reunindo diversos escritos de Tolkien. A edição, feita por seu filho, inclui
inúmeros trechos antigos da história da Terra Média e comentários sobre aquele
mundo. Há narrativas conflitantes, entre os rascunhos, ricos em detalhes.
“O Senhor
dos Anéis” (nova tradução)
A obra mais famosa de Tolkien e um
dos livros de fantasia mais importantes da literatura mundial. O protagonista,
Frodo, precisa destruir um anel mágico antes que o mundo seja conquistado pelas
forças maléficas de Sauron.
“O
Hobbit” (nova tradução)
É a história anterior a “O Senhor
dos Anéis”, narrando como o anel foi descoberto pelo atrapalhado Bilbo. O livro
segue um modelo de literatura medieval e inclui canções e poemas entre suas
páginas.
[Fonte: www.folha.com.br]
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