Ciro não decide o
significado de réu nem Bolsonaro o de misógino
Escrito por Sérgio Rodrigues
Ciro Gomes disse no “Jornal Nacional” que
Carlos Lupi, presidente do seu partido (PDT) e garantido por ele em sua equipe
caso vença a eleição, não é réu. “É réu”, rebateu William Bonner. “Não é réu”,
insistiu Ciro.
Fato: Lupi responde a processo por improbidade administrativa numa vara federal de Brasília. Apanhado no contrapé, o candidato, que é formado em direito, invocou uma sutil distinção: a palavra “réu” seria exclusiva da esfera criminal, e a ação contra Lupi é civil.
“O Lupi não é réu em absolutamente
nenhum procedimento, como eu falei. Improbidade é civil, não tem nada a ver com
crime”, declarou, afirmando que o presidente do PDT deveria ser chamado de
“requerido”.
Do ponto de vista da linguagem, foi o embate mais explícito da campanha até
agora. Foi também um ótimo lembrete de como as palavras podem ser usadas tanto
para esclarecer quanto para confundir.
Lupi é réu, sim. Os maiores
dicionários de Brasil e Portugal concordam em linhas gerais com a definição do
“Aurélio” para o substantivo que herdamos do latim “reus” no século 15:
“Indivíduo contra quem se instaurou ação civil ou penal”. Esgrima verbal é
assim. A linguagem é um castelo erguido num pântano, cheio de alçapões, quartos
de espelhos e passagens secretas. Se nem a busca da verdade numa disputa
intelectual rigorosa é ciência exata, ao se apelar à simpatia de um público
amplo as estratégias de persuasão matizam o discurso ao infinito.
É provável que os fãs de Ciro
tenham saído do episódio certos de que o candidato deu uma lição de português a
Bonner, enquanto quem não gosta dele está convencido do contrário. A isso se
chama viés de confirmação.
Não há dúvida de que o candidato
sofismou. Sofisma é um recurso retórico que consiste no uso habilidoso da
linguagem para dar fumaças de verdade a uma ideia inconsistente. Mesmo assim,
contribui para o aprofundamento do debate que a precisão semântica das palavras
seja disputada abertamente por quem tem domínio sobre elas. E Ciro Gomes é, de
longe, o candidato de maior destreza verbal nessa disputa.
Pode-se argumentar que o caso do
sentido de “réu” é menor, cabelo em ovo, no quadro de uma campanha em que temas
como segurança pública e desemprego são feridas abertas. É verdade. Menor, mas
revelador. Campanhas eleitorais são feitas no fim das contas de palavras, e
palavras se fundam num pacto social. É por meio da crença compartilhada numa
ficção que superamos a arbitrariedade essencial de todo signo: o que há em
comum entre o animal boi e a palavra “boi”?
Quando muitos petistas passaram a
chamar FHC de “fascista”, a imprecisão era tão gritante que chegava a ser
cômica. Poucos atentaram para o risco de uma entropia que terminasse por deixar
a palavra impotente quando de fato precisássemos dela. Bois devem ser nomeados
com cuidado.
Em momentos de esgarçamento do
pacto democrático como o que o Brasil vive hoje, com a polarização exasperada
privilegiando propostas de supressão violenta da diferença sobre a negociação,
é preciso cuidar para que a linguagem não vire geleia.
Assim como Ciro não decide o
significado de “réu”, Jair Bolsonaro não pode negar que é misógino e homofóbico
sem insultar as leis da semântica, após ter declarado que mulher feia “não
merece ser estuprada” e que “seria incapaz de amar um filho homossexual”.
Misoginia e homofobia, que atraem votos, não desaparecem por mágica quando
passam a repeli-los. A linguagem exige respeito.
[Fonte: www.folha.com.br]
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