Escrito por Luli Radfahrer
O mundo híbrido de sentimentos e
tecnologias é capaz de promover algumas crueldades jamais imaginadas. Um
exemplo recente está na Sony, que ao descontinuar o suporte e manutenção de sua
linha de robôs caninos AIBO, condena à morte certa os cerca de 150 000 beagles
que vendeu entre 1999 e 2005. Diferente dos animaizinhos que supostamente
teriam sofrido maus tratos no Instituto Royal de São Roque, o fim da vida
desses cãezinhos digitais será tão indolor quanto a "morte" de
qualquer outro dispositivo eletrônico.
O mesmo, no entanto, não poderá ser
dito de seus pobres donos. Muitos deles, especialmente os mais velhos,
desenvolveram com seus mascotes eletrônicos uma relação mais intensa do que
normalmente se dá com traquitanas computadorizadas. Para alguns, suas máquinas
ganharam vida própria.
É fácil julgar esses usuários. Um
robô é mais cômodo e conveniente do que um animalzinho, da mesma forma que um
cão ou gato é mais cômodo e conveniente do que uma criança. A realidade, no
entanto, é mais complicada e sutil. Por demandarem um longo período de
treinamento e adaptação, os bonecos, como os mascotes vivos, criam em seus
donos uma forma de dependência psicológica. Por mais que as necessidades e
demandas de um aparelho digital sejam construídas, a relação emocional entre
pessoas e objetos é mais comum do que se imagina. Ela se dá nos telefones que
são customizados com capinhas, protetores de tela e diversos aplicativos e
configurações, dando a seus usuários um trabalho que uma TV, uma máquina de
lavar ou um liquidificador jamais ousariam.
É uma relação delicada. Quando dá
certo, ela oferece a seus donos um ombro amigo, mesmo que artificial, para que
frustrações com relação a um mundo exterior cada vez mais frio e competitivo
sejam desabafadas. Em sociedades extremamente agressivas, como as do Japão e de
Cingapura, em que mostrar qualquer fragilidade (em casos mais extremos, até
procurar ajuda psicológica) é considerado sinônimo de fraqueza, esses
tamagotchis - vivos ou não - são válvulas de escape possíveis. O mesmo se dá
para os espaços sociais agressivos e isolados em que um número cada vez maior
de jovens é obrigado a viver, abandonados pelos pais e oprimidos pelo grupo.
AIBO é mais do que um brinquedo.
Como várias "loucuras" que mal deixaram o Japão, o cãozinho é pouco
conhecido no Ocidente. Acrônimo para Robô de Inteligência Artificial e homônimo
para "amigo" ou "parceiro" em japonês, os últimos aibos
eram capazes de falar mais de mil palavras, compreender mais de cem e se
exprimir em mais de 60 estados emocionais. Os mais empáticos podiam ver o mundo
de seu ponto de vista através de uma câmara embutida na cabeça do cãozinho.
É fácil dizer que um robô não é um
ser vivo, mas o que identifica a "vida" em uma relação afetiva? Cães
são vivos, mas não compreendem. Robôs não são vivos, mas estão cada vez mais
próximos de uma simulação bastante razoável de compreensão. Como previu o Teste
de Turing, a máquina não precisa pensar, desde que o aparente fazer.
Já faz um tempo que os gêneros
fantásticos da literatura lidam com essa dialética existencial. Em 1982, os
androides de Blade Runner se comportavam como humanos, sentiam-se vivos e revoltavam-se
com o fato de serem temporários. Em Toy Story, o astronauta Buzz Lightyear tem
de aprender a notícia deprimente de que, em vez do indivíduo livre e autêntico
que acredita ser, ele não passa de um boneco, vendido em grandes quantidades em
lojas, idêntico a milhares de outros, banal e com discurso previsível.
Nos planos da Sony, o cãozinho
deveria transformar-se numa nova plataforma, como o PlayStation. Mas os
primeiros modelos eram limitados, e como aconteceu com o Orkut para o Google, o
AIBO nunca passou de um projeto paralelo para a empresa, acostumada a vender
produtos às dezenas de milhões, não centenas de milhares. Na virada do século,
quando a gigante japonesa entrou em crise, o projeto foi encerrado. A
assistência técnica durou mais uma década. Mas o aparelho é muito mais
complicado do que um jipe ou fusca, por isso as peças começaram a rarear e as
oficinas fecharam. Sobrou para mecânicos informais que canibalizam partes
funcionais de alguns para consertar outros.
Tem coisas do Japão que parecem ficção
científica. Para a religião xintoísta, muito popular no país, tudo está
interligado. Suas divindades, os "Kami", podem ser definidos como
espíritos ou essências presentes em cada objeto. Partes de um todo indivisível,
eles estão integrados à essência humana numa grande rede complexa. É
misticismo, mas está cada vez mais próximo do futuro. Mesmo que seja uma versão
de futuro em que não se imagine viver.
[Fonte: www.folha.com.br]
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