Por RAQUEL COZER
Pense na maior referência possível da literatura
colombiana –o realismo fantástico de Gabriel García Márquez– e, então, esqueça
tudo o que diz respeito a essa referência.
É a melhor maneira de começar
a entender Andrés Caicedo, autor de um romance só, "Que Viva la
Música!". A obra de 1977 ajudou a causar uma reviravolta na produção
literária latino-americana, mas passou décadas despercebida no Brasil.
Narrado por uma garota rica e loira que se joga no
submundo de festas e drogas da Cáli dos anos 70, o romance foi eleito pelo
jornal colombiano "El Espectador" o segundo mais importante da
literatura daquele país no século 20 –o primeiro foi "Cem Anos de Solidão",
de Gabo.
Apesar disso, só agora chega
ao Brasil, pela editora Rádio Londres, com o título "Viva a Música!",
na tradução de Luis Reyes Gil, e na esteira de um inédito reconhecimento
internacional para o autor.
Editado há tempos pela
Alfaguara em países hispânicos, influência declarada para escritores como o
argentino Fabián Casas e o chileno Alberto Fuguet, "Viva a Música!"
chegou a França, Itália, Holanda, Inglaterra e Finlândia a partir de 2012. Além
disso, acaba de ser adaptado
ao cinema por Carlos Moreno –o
filme foi exibido na semana passada em Sundance.
SUICÍDIO
Caicedo é ele próprio um personagem e tanto. Tímido e gago, era conhecido no
círculo intelectual de Cáli como talento precoce. Aos 20 e poucos, já tinha
criado um cineclube e uma revista de cinema e publicado o livro de contos
"El Atravesado" (1975), bancado pela mãe.
Escreveu "Viva a
Música!" antes dos 23 anos. "Ele sabia que tinha feito algo
importante", diz a irmã Rosario Caicedo, 64. Em 4 de março de 1977, aos
25, ele recebeu a primeira cópia da edição feita pela Colcultura. Horas depois,
caiu morto sobre sua máquina de escrever, após ingerir 60 pílulas de sedativo.
O romance explicava:
"Antecipe a morte, marque um encontro com ela. Ninguém quer saber de
crianças envelhecidas", diz a narradora, já perto do fim. "Se você
deixar uma obra, morra tranquilo, confiando em uns poucos bons amigos."
O suicídio não foi surpresa
para ninguém que o conhecesse –nem poderia, visto que fora a terceira tentativa–,
mas certamente ajudou a tornar Caicedo um autor cult.
"A morte de Caicedo faz
parte, hoje, da obra de Caicedo", argumenta o escritor colombiano Sandro
Romero Rey, autor de "Andrés Caicedo o la Muerte sin Sosiego".
"'Viva a Música!' é uma
espécie de 'O Apanhador no Campo de Centeio' colombiano", define o
cineasta Luis Ospina, diretor de dois documentários sobre o autor. "Todo
mundo aqui lê, é nosso Salinger."
Para Ospina, antes de
"Viva a Música!" "toda a literatura na Colômbia era rural".
"Esse foi nosso primeiro romance urbano, jovem, precursor do movimento
McOndo", afirma, em referência ao jogo de palavra entre a fantástica
aldeia Macondo, de "Cem Anos de Solidão", e o McDonalds, e que nomeou
a corrente literária latina contrária ao realismo mágico.
Rey e Ospina organizaram a
obra póstuma de Caicedo, que inclui "Destinitos Fatales", de
histórias curtas, e "Ojos al Cine", com 774 páginas de críticas de
cinema.
SALSA
María del Carmen, a protagonista de "Viva a Música!", se deslumbra
com o rock inglês, embora não entenda nada das músicas dos Rolling Stones (o
que a faz dar colher de chá para Ricardito, o Miserável, pretendente que lhe
traduz as letras ao pé do ouvido). Até que descobre a salsa da dupla popular
Richie Ray e Bobby Cruz, passando por uma transformação cultural.
Um apêndice ao fim do romance
aponta mais de cem músicas citadas no texto, direta ou indiretamente,
infiltradas na fala da narradora.
Elas servem, na visão de
Rosario Caicedo, para florear uma mensagem muito mais profunda. "O livro
trata da angústia existencial de alguém que tenta sobreviver às pressões da
sociedade", diz.
Ospina resume essa angústia de
modo contundente: "O mundo não foi feito para Caicedo". Isso ajuda a
explicar por que, enquanto Gabriel García Márquez morreu aos 87 anos, seu
oposto literário quis viver menos que um terço disso.
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