No antológico filme "Il Postino" ("O
Carteiro e o Poeta", na versão brasileira), Mario Ruoppolo, carteiro vivido
pelo inesquecível Massimo Troisi, estabelece uma fecunda convivência com o
grande poeta chileno Pablo Neruda, vivido por Philippe Noiret, também
inesquecível.
Nas conversas com Neruda, que
cumpria exílio no sul da Itália, o carteiro ("postino", em italiano)
acaba descobrindo nuanças do fazer poético, o que o leva a perceber que é muito
melhor sugerir e/ou dar a entender do que dizer com todas as letras. Ruoppolo
se encanta quando descobre o que é uma metáfora e mais ainda quando constrói
uma metáfora.
Os tempos que vivemos não são
propriamente os melhores para que se fale de metáforas, já que a coisa toda
anda muito bruta, na lata, com pouca ou nenhuma imaginação, com metáforas pouco
ou nada inspiradas.
O resultado disso tudo é o
embrutecimento, a perda da sensibilidade, da delicadeza, da capacidade de
compreensão do belo, do singelo.
A metáfora é a figura de
linguagem por excelência, que concentra a síntese do que é a linguagem
figurada, simbólica, em que não se usam as expressões "normais", mas
"imagens" que traduzem o que se quer dizer. Em "Aquela cara é o
coração de Jesus", da letra de "Giuletta Masina", Caetano Veloso
transfere diretamente para "aquela cara" (a cara de Giuletta Masina
no papel da prostituta Cabiria, do filme "Le Notti di Cabiria", de
Federico Fellini) o que vê de semelhante entre essa cara e o coração de Jesus.
Essa transferência direta é chamada de metáfora.
Densa, forte, fortíssima, a
imagem sintetiza muitos dos sentimentos cristãos, dos quais muitas vezes até o
bonachão Francisco se esquece.
Ao redigir o texto da semana
passada ("Saudade"), eu tinha a intenção de citar algumas metáforas
sobre a saudade, mas faltou espaço. De todas as que me vieram à mente, algumas
das que mais me tocam estão na letra de "Pedaço de Mim", de Chico Buarque.
Uma delas diz que "A saudade é o revés de um parto"; outra, que
"A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu".
Diante de achados poéticos
dessa magnitude, o melhor é silenciar, em sinal de respeito à grandiosidade
artística. Impõem-se o recolhimento, a reverência, a reflexão.
No filme "Il
Postino", Neruda diz ao carteiro que, quando é explicada, a poesia se
torna banal. Muitas vezes (ou quase sempre), isso é fato. A tentativa de
tradução de certas metáforas pode esbarrar no ridículo, no nonsense. É mais ou
menos como explicar certas piadas. Perde-se a graça.
O grande Garcia Lorca
costumava mostrar aos amigos alguns dos versos que acabara de escrever. Muitas
vezes, ouvia algo como "É tudo muito bonito, mas o que isso
significa?". "Não importa", dizia ele; "se você achou
bonito, é o que importa".
Muitas vezes a incompreensão
da linguagem literária não resulta só da falta de percepção das imagens;
resulta também do desconhecimento dos textos com os quais dialoga o texto que
lemos e/ou do significado de algumas passagens. "Quando se leem os versos
iniciais da "Canção do Exílio" de Murilo Mendes ("Minha terra
tem macieiras da Califórnia / Onde cantam gaturamos de Veneza"), por
exemplo, é fundamental conhecer a "Canção do Exílio" original (de
Gonçalves Dias) e, sobretudo, compreender o tom irônico do texto e o sentido de
certas palavras.
Já toquei de leve nesse poema
em outras colunas e já prometi trocar duas palavras a respeito dele. Um dia eu
cumpro a promessa. É isso.
[Fonte: www.folha.com.br]
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