Uma das
edições do "Repórter CBN" de ontem veiculou uma passagem parecida com
esta: "Algumas vítimas o xingaram e tentaram agredi-lo...". O
referente do "o" e do "lo" em questão é o ex-médico Roger
Abdelmassih.
O caro
leitor certamente notou que o redator preferiu "xingar" a
"ofender", "destratar", "afrontar" etc. E fez ele
muito bem. O que as vítimas fizeram mesmo foi "xingar". Imagine o
texto assim: "Algumas vítimas o ofenderam e tentaram agredi-lo...".
Que tal? A mensagem teria o mesmo tom, a mesma dose de realidade?
"Xingar"
pode até ser sinônimo de "ofender" etc., mas é claro que cada um
desses verbos tem seus próprios matizes. Os dicionários (brasileiros e
portugueses) registram "xingar" como típico do português do Brasil.
Sorte nossa termos e podermos usar um termo tão específico como esse.
"Xingar"
vem do quimbundo, "língua da família banta, falada em Angola pelos
ambundos" ("Houaiss").
Esse
episódio ilustra muitíssimo bem a importância da escolha das palavras. Não é à
toa que o "Houaiss" define (muito bem) "sinônimo" como
"palavra de significado semelhante ao de outra e que pode, em alguns
contextos, ser usada em seu lugar sem alterar o significado da sentença".
É bom repetir: "pode, em alguns contextos, ser usada em seu lugar sem
alterar o significado da sentença". No caso do contexto do boletim da CBN,
parece que a troca de "xingar" por "ofender" de fato não
altera essencialmente o significado da sentença, mas altera (e como!) o tom, o
matiz.
É por essas
e outras que convém voltar ao tema "simplificação da linguagem", que
comentei rapidamente há duas semanas. Citei a troca (em "O
Alienista", de Machado de Assis) de "sagacidade" por "esperteza",
lembrada pelo professor João Cezar de Castro Rocha em artigo publicado em
"O Estado de S. Paulo".
Eis uma das
passagens: "...pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a
perseverança...". O "Houaiss" define assim
"sagacidade": "1. Qualidade ou virtude de sagaz; aptidão para
compreender ou aprender por simples indícios; 2. Agudeza de espírito; argúcia,
manha, malícia".
E então,
caro leitor? Que lhe parece trocar "sagacidade" por
"esperteza"? É sempre bom relembrar a carga pejorativa da palavra
"esperteza" no linguajar brasileiro de hoje.
A questão da
escolha do vocabulário tem outros aspectos relevantes. Um deles é visto quando
se faz a "coesão lexical", que ocorre, por exemplo, com o uso de
termos que representem seres já citados num texto. Certa vez, o grande Clóvis
Rossi analisava determinado aspecto da sordidez da realidade brasileira. No fim
do texto, o grande Rossi escreveu isto: "...a oitava economia do mundo não
passa de um grande desastre social".
Como se vê,
Rossi substituiu "o Brasil" por "a oitava economia do
mundo". Com esse recurso, o articulista não só evitou a enfadonha
repetição (de "Brasil", no caso), como também acrescentou/lembrou uma
informação importante (o PIB do Brasil era o oitavo do mundo). Se levarmos em
conta o choque que se dá entre o fato de termos um PIB significativo e sermos
"um grande desastre social", notaremos a habilidade do articulista
com as palavras. Escrever bem não é só juntar algumas palavras obedecendo às
normas gramaticais...
Às vezes, o
tiro sai pela culatra. Numa de suas provas, a Unesp incluiu um texto cujos
protagonistas eram os pilotos Ayrton Senna da Silva e Alain Prost. Lá pelas
tantas, depois de evitar várias vezes a repetição dos nomes dos pilotos (o
brasileiro, o francês, o campeão do ano X, o campeão do ano Y, o tricampeão, o
tetracampeão...), o articulista não se conteve: usou "o nanico" para
referir-se a Prost (como se Senna fosse um gigante...).
Além de provocar confusão, a coesão lexical foi deselegante. Umas aulinhas com
os textos dos mestres (como Rossi) pode ajudar. É isso.
[Fonte: www.folha.com.br]
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