Por DIOGO BERCITO
em MADRI
Milton Hatoum fecundou, na
Espanha, "em um quartinho de 6º andar", em "um inverno sem
calefação", "nos horários mais absurdos", seu romance de
estreia, "Relato de um Certo Oriente". A obra, como um filho robusto,
comemora seus 25 anos de publicação com tradução inédita ao árabe, no Egito.
As feições do livro fazem Hatoum
se lembrar, em entrevista à Folha, de um tempo passado, com o que parece ser o
saudosismo dos pais. "Foram os meses menos infelizes da minha juventude,
que estava acabando. Eu era um pobre estudante da província sonhando em ser um
escritor", diz.
O que de fato ele se tornou.
Hatoum participará, no próximo dia 27, de uma mesa na Bienal Internacional do
Livro de São Paulo, onde irá debater com o seu colega libanês Elias Khoury.
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A recordação
dos anos vividos na Espanha, durante os quais Hatoum deu início a uma carreira
mais tarde premiadíssima, é a de um marco na memória do autor, nascido em
Manaus, em 1952.
"O que
vivi aos 20, 30 anos se tornou minha infância, que renovei enquanto
envelhecia", diz. O autor trabalha hoje em um romance que deve ser narrado
por um personagem exilado em Paris.
Hatoum mudou-se para Madri no final
dos anos 1970, com uma bolsa de estudos. "Não era fácil viver no Brasil.
Era chato e opressivo", diz. A Espanha, àquela época, celebrava a Movida
Madrileña, depois da ditadura de Francisco Franco (1936-1975).
"Eu descobri ali a minha
liberdade. Era uma coisa nova também para os espanhóis", conta. "Vivi
essa ininterrupta comemoração."
Os quatro meses previstos pelo
programa tornaram-se quatro anos, e o "jovem da província" trabalhou
ali, "a mão" e "no braço", no rascunho de sua primeira
obra. À época, vivia no bairro de Argüelles. "Escrevi também em Barcelona
e em Paris. Era um manuscrito nômade e, por anos, passou por muitos quartinhos
de empregada."
"Eu morava mal. O dinheiro da
bolsa não era suficiente, então fazia bicos de tradução. Mas isso não me
impedia de ler e de escrever. Hoje penso: o conforto burguês atrapalha o
escritor."
Antes de "Relato de um Certo
Oriente", Hatoum havia tentado, também na Espanha, escrever sobre os
tumultos políticos no Brasil.
Ele se lembra, rindo, do amigo
argentino que lhe sugeriu abandonar o projeto após ler seu esboço. "Joguei
o manuscrito na lareira de uma amiga catalã, em Barcelona", conta. Então
desistiu do lastro na atualidade e passou a trabalhar a memória de sua família,
imigrantes libaneses, em Manaus.
A fecundação resultou não apenas em
"Relato", mas também em "Dois Irmãos", que deve ser
adaptado para uma série na TV Globo. A obra, que ele diz ser sua menos
autobiográfica, garantiu com o sucesso que ele pudesse se dedicar à literatura.
Hoje reescreve as quase 600 páginas
em que tem trabalhado, sobre experiências em Brasília nos anos 1960 e em São
Paulo na década seguinte.
[Foto: Bruno Poletti –
fonte: www.folha.com.br]
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