O Rio
Grande do Sul é, desde suas primeiras representações simbólicas, uma
metáfora e uma alegoria intelectuais que se organizam a partir da
evocação de um antigo tipo luso-platino-rural, que acabou por suplantar
as outras vertentes constitutivas de sua presente identidade. Como
qualquer construção validada pelos extratos dominantes, essa alegoria
teve, até pouco, sua hegemonia incontestada, havendo raro espaço de
diálogo com outras representações concomitantes, nomeadamente as que
decorrem dos surtos imigratórios dos séculos 19 e 20.
Nesse conjunto de fatores superpostos – e, não raro, conflitantes –, a
obra de Moacyr Scliar avulta por ser aquela que optou por uma via
alternativa que instituiu entre nós uma reflexão a que não estávamos
acostumados: a de que somos humanos, antes de gaúchos.
Alguma crítica
por vezes diz que o componente judaico seja a face mais visível e
representativa de sua obra; trata-se, esta, de uma visão pobre, porque,
antes de tudo, Scliar traz para nossa literatura uma via inesperada que
aparece não como contraponto, mas como justaposição ao tipo hegemônico.
Ambas são perspectivas construídas e, por isso, habitam a mesma
legitimidade.
Outro viés referido pela crítica como essencial é o veio
fantástico de seus romances, novelas e contos. Na verdade, trata-se de
outra dicção para a mesma universalidade. Se nosso fantástico está presente
já desde Lendas do Sul, este mesmo fantástico é um dado previsto pela
cultura e pela mitologia; já o fantástico de Scliar é criação pura, isto
é, provém de uma fabulação exclusiva e que não se confunde com qualquer
outra preexistente mitologia.
Essas duas circunstâncias temáticas de Scliar – a judaica e a
fantástica – significam, no cerne, o alargamento ontológico de uma literatura que se debatia entre seus que-fazeres irremediáveis e miúdos, vítima da estéril dicotomia pampa-cidade.
A obra de Scliar talvez seja a mais feliz investida nos domínios de
uma universalidade moderna, embora tardia em termos regionais, e que
precisou desse escritor de exceção para impor-se como possibilidade
estética.
O constructo intelectual que é o Rio Grande, dessa forma, adquirirá,
de agora em diante, uma obrigatória nuança, não a desfazê-lo, mas a
matizá-lo. Com isso ganha-se em colorido e diversidade, até que outras
obras surjam a transformar esse quadro pois, como sabemos, a cultura e a
literatura se definem como processo que estará sempre descontruindo o
que antes construiu.
[Fonte: www.portalvitrine.com.br]
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