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Escritor britânico Aldous Huxley em foto de fevereiro de 1938
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Escrito por Sérgio Rodrigues
Outro dia, num supermercado carioca,
havia junto à geladeira das cervejas um cartaz de estilo abstruso:
"Prezado cliente, informamos que as bebidas refrigeradas possuem
precificação diferenciada."
Encontrei
num aviso colado na parede de uma agência dos Correios um texto da mesma
família: "Informamos que a tarifa do serviço de achados e perdidos é
facultada no caso de hipossuficiência econômica do usuário."
A
paisagem textual brasileira está cheia de "precificações
diferenciadas", "hipossuficiências econômicas" e outros
poluentes típicos do burocratês.
Tudo
isso é cômico, mas só para quem não se intimida com latinório e vê beleza na
simplicidade democrática de formulações próximas da fala como "bebidas
geladas são mais caras" e "clientes sem dinheiro não pagam"
(deixemos de lado o uso torto da palavra "facultado").
O
problema é que o riso fica amargo quando se leva em conta que essas pequenas
bobagens cotidianas são sintomas da desolação educacional vigente num país em
que apenas uma em quatro pessoas é plenamente alfabetizada.
"É
notável como na história de todas as literaturas a simplicidade é uma invenção
tardia", constatou num ensaio de 1923 o escritor inglês Aldous Huxley,
autor do romance distópico "Admirável Mundo Novo".
Huxley
falava de uma escritora irlandesa chamada Amanda McKittrick Ros, conhecida na
época como "a pior escritora do mundo". Ros fez algum sucesso entre
os intelectuais britânicos das primeiras décadas do século 20 por sua prosa de
péssima qualidade, empolada e cafona.
Um
exemplo do estilo rosiano (epa!), com tradução caseira do colunista:
"Fala! Irene! Esposa! Mulher! Não fiques sentada em silêncio a consentir
que o sangue que agora ferve em minhas veias verta por cavidades de paixão
irrefreada e goteje para me encharcar com seu matiz carmesim."
Um
caso clássico em que menos (cultura literária) vira mais ("efeitos
literários", com aspas imprescindíveis). Não acredito que traia o espírito
da sacada de Huxley, que falava apenas de literatura, propor sua aplicação à
linguagem em geral.
Aprofundando
sua tese da simplicidade tardia, afirmou o escritor inglês: "Na Sra. Ros
nós vemos, como nos romances elisabetanos, o resultado da descoberta da arte
por uma mente não sofisticada e sua primeira tentativa consciente de produzir
um efeito artístico."
Sua
conclusão: "As primeiras tentativas de qualquer pessoa de ser
conscientemente literária sempre resultam na mais elaborada
artificialidade."
As
palavras "qualquer" e "sempre" parecem dar à frase uma
pretensão de universalidade que dificilmente resistiria a uma análise rigorosa.
Por que não pode haver pessoas em quem a simplicidade é um valor inato?
No
entanto, parece evidente que o rebuscamento ridículo é pelo menos um dos
resultados mais frequentes do encontro de "uma mente não sofisticada"
(como quer Huxley) com a ideia de exibir competência num código sofisticado
como a literatura.
Ou,
na minha transposição do argumento para fora do campo literário, um dos
resultados mais frequentes do encontro de um falante precariamente letrado
(como quer o sistema educacional brasileiro) com a ideia de exibir competência
num código sofisticado como a linguagem.
[Foto: Associated Press – fonte: www.folha.com.br]
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