quarta-feira, 26 de abril de 2017

Memórias de um grande porre democrático

Em meio a curiosos e soldados, blindado cruza rua no bairro do Chiado, em Lisboa, em 25 de abril de 1974.

Escrito por Clóvis Rossi 

É hoje (25 de abril) o 43º aniversário de uma revolução anárquica, alegre, festiva, democrática a mais não poder, a chamada Revolução dos Cravos em Portugal.

Que foi festiva, basta lembrar que os fuzis dos soldados que a levaram a cabo não disparavam; eram enfeitados por cravos vermelhos, do que decorre o nome do movimento.
Que foi anárquica, é só lembrar que os jornalistas que cobríamos a história toda localizávamos os oficiais que lideravam o movimento, depois da tomada do poder, pelas chaimites, os carros de combate, estacionadas à porta dos clubes noturnos de uma Lisboa em festa permanente.
Que foi democrática, demonstra-o o fato de que a festa envolveu socialistas, comunistas, maoístas, liberais e anarquistas.
Estes últimos, aliás, eram os mais divertidos. Quando o coronel Vasco Gonçalves foi nomeado primeiro-ministro, em 1974 (durou pouco mais de um ano), tinha fama de louco.
Pois os anarquistas picharam no muro do hospício de Lisboa o "a" dentro de um círculo, que é sua assinatura, e a frase "Vasco, volte para casa".
A limpeza urbana caiou o muro, mas, no dia seguinte, os anarquistas voltaram e escreveram "Vasco, pelo menos venha para consultas". Nova limpeza, nova pichação: "Vasco, pelo amor de Deus tome os remédios".
A revolução me proporcionou a primeira viagem à Europa e sua cobertura foi um ato de irresponsabilidade, admito.
Eu não sabia nada de Portugal. O ensino sobre o país no Brasil se encerrava (se encerra ainda?) com a independência do Brasil, século e meio antes.
A única e precária tentativa de cobrir essa imensa brecha de conhecimento foi ler, na viagem até Madri (Lisboa estava fechada para aviões), o livro "Portugal e o Futuro", do general Antônio Spínola, o oficial mais graduado entre os rebeldes.
Cheguei num sábado, fui direto para o Rossio, o marco zero da cidade, para cobrir uma manifestação dos maoístas do MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado, hoje Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses).
Gritavam um slogan que eu não conseguia decifrar, não acostumado ao sotaque português, ainda mais que as palavras pareciam sair grudadas umas às outras. Tinha vergonha de perguntar ao público o que a moçada estava dizendo, teoricamente na mesma língua que a minha.
Até que deixei o pudor de lado, perguntei e descobri que era o grito de guerra dos bolcheviques russos de 1917: "Pão/Paz/Terra/e Liberdade". No caso, "pãopazterraeliberdade".
No domingo, bati à porta do "Expresso", semanário que era (e continua sendo) a melhor publicação portuguesa. Atendeu-me Marcelo Rebelo de Sousa, que, além de muito bem informado e de suas qualidades intelectuais intrínsecas, era filho de um ex-ministro das Colônias da ditadura.
Conhecia, portanto, pelo lado de dentro um dos temas centrais para deflagrar a Revolução dos Cravos, a guerra colonial na África. Hoje, Marcelo é o presidente de Portugal e fico feliz de saber que é bem avaliado.
O hoje presidente perdeu comigo não sei quantas horas, explicando-me Portugal de A a Z —e, ainda por cima, sem puxar a brasa para a sardinha para o seu lado político, mais à direita, liberal mais que conservador.
Daí em diante, era bater perna atrás dos eventos que se sucediam diariamente. Nas reuniões do Movimento das Forças Armadas, o motor da revolução, havia muita intriga e muita conspiração, mas havia poucos segredos: lembro-me de uma reunião teoricamente decisiva para algo, em um quartel do interior.
Havia mais jornalistas que oficiais militares, dava para ouvir quase tudo da janela aberta da sala em que o MFA se reunia e, depois, era fácil arrancar das mãos do oficial mais próximo o papel com o resumo da ópera.
Uma bagunça, mas que transformou Portugal. O país cinzento, de mulheres vestidas quase sempre de negro, os homens de aparência tristonha, é hoje multicolorido, moderno, quase rico. E adorável.
O que não mudou muito é o caráter meio anárquico do governo. Na eleição mais recente, ninguém conseguiu a maioria suficiente para governar. Os conservadores ficaram em primeiro lugar, mas os partidos de esquerda (o Socialista, o Comunista e o Bloco de Esquerda) armaram uma improvável aliança (comunistas e socialistas sempre foram adversários) e montaram governo.
A mídia chama a coalizão governista de "a geringonça". Adoraria saber o que picham hoje os anarquistas.

[Fonte: www.folha.com.br]

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